Wednesday, November 15, 2006

Deusa

Velhos Caminhos




Acredito que quando escolhemos ser caminhantes, isto é, quando entramos na senda da espiritualidade com um genuíno espírito de peregrinos, o caminho também nos escolhe... e talvez não sejamos apenas nós quem escolhe aqueles que nos acompanham na caminhada.Também acredito que cada um de nós percorre inevitavelmente o seu próprio e único caminho, contudo, há momentos em que necessitamos dos ensinamentos e da companhia de outros caminhantes, outros peregrinos... não é verdade?

Já que falo em caminhos, quero deixar claro que eu apenas me defino verdadeiramente como caminhante, todos os outros rótulos esotéricos passam-me ao lado. Mesmo quando digo que sou pagã, digo-o à minha maneira, estando o conceito de paganismo inserido num contexto que pode muito bem ser apenas o meu contexto... seja como for, quero voltar a dizer que estou disponível para estudar, reflectir e falar abertamente de espiritualidade, sem dogmas, mas também sem preconceitos. E sempre sem colocarmos rótulos a nós próprios ou aos outros... já sabem, se assim o entenderem, escrevam-me, em qualquer altura. :))

Wednesday, September 27, 2006

Poderá a Intuição ser explicada pela ciência?

Ouvimos dizer muitas vezes que a intuição não tem qualquer base científica. Mas, será mesmo assim?...

Comecemos pelas tais bases científicas: Einstein, com a teoria da Relatividade Geral, deu-nos uma descrição muito boa do espaço-tempo em larga escala. Pois é, mas os físicos sabem que não há provas reais que justifiquem a utilização das equações de Einstein a escalas subatómicas. Mas a escalas subatómicas, entramos no território da física quântica. E a física quântica diz que o espaço-tempo não pode ser contínuo. Pois é, a física quântica defende que o próprio espaço-tempo deve ter uma estrutura granular a uma pequeníssima escala, neste caso o tempo de Planck (se não sabes o que é, imagina um comprimento de tempo muito curto). Assim, a estrutura do espaço-tempo não é uma linha contínua, ou só aparentemente é uma linha-contínua...

Pois, mas então não nos deslocamos do passado para o futuro? Não é essa a seta do tempo? Hmm, Stephen Hawking dir-nos-ia que há pelo menos três setas diferentes do tempo: há a seta termodinâmica, que te indica o sentido do tempo em que a entropia aumenta, há a seta psicológica (ou o tempo psicológico) que te dá a sensação de que o tempo passa, e ainda há a seta cosmológica que mede o sentido do tempo em que o Universo está a expandir-se em vez de contrair-se.

Mas, voltemos um pouco atrás: dizia eu que a física quântica não defende um espaço-tempo contínuo, mas um espaço-tempo que a escalas subatómicas é de estrutura granular. Imaginemos uma imensa rede cheia de minúsculos "buracos de verme", isto é, túneis através do espaço-tempo cujas extremidades são semelhantes a buracos negros em miniatura.

Fantástico, não é? E segundo a física quântica, seriam estes buracos de verme que formariam a estrutura daquilo que nós vemos como um espaço e um tempo uniformes e contínuos.

Repara que nesta representação microscópica do espaço-tempo, a terminação de cada buraco de verme poderia estar ligada à terminação de outro buraco de verme, num outro espaço-tempo, em qualquer outro lugar do universo. Neste domínio microscópico não se aplica a teoria da relatividade geral e, assim, “algo” poderia passar da extremidade de um destes buracos de verme para a extremidade de outro buraco de verme, em tempo nenhum. Claro que como estas extremidades são muitíssimo pequenas, nenhuma matéria poderia passar por elas, só mesmo partículas subatómicas como um protão. Mas, e aqui é que chegamos à parte interessante, poderia passar informação: zeros e uns, representados por partículas subatómicas. A informação propagar-se-ia, mas ainda assim precisaríamos de a converter. Precisaríamos de ter integrado um sistema operativo que nos apresentasse essa informação de uma forma inteligível, doutra forma ignorávamo-la como ruído.

Assim, de diferentes regiões do espaço-tempo (nós próprios num espaço-tempo diferente???...) poderia chegar-nos informação pelos túneis do tempo e quando a descodificássemos, interpretávamo-la como intuição, ou seja, informação não dedutiva (não foi produzida por um raciocínio dedutivo), mas ainda informação... vinda de uma fonte desconhecida mas fiável.

Lindo, não é? :)

p.s. Publiquei este texto há algum tempo nos fóruns do Sapo. Hoje encontrei-o por acaso e decidi repensá-lo. Que acham?... :)

Thursday, August 31, 2006

Reino Maravilhoso

Do alto do Penedo Durão, contemplando o poema geológico como lhe chamou Miguel Torga, sentimo-nos contemporâneos do instante da criação, a magia antiga à solta naqueles penedos entranha-se em nós e dá-nos por um instante a eternidade. Trás-os-Montes é um reino maravilhoso que alimenta a alma. Entramos neste mundo mágico e a realidade transforma-se, voltamos ao acto primeiro, ao mundo mítico dos heróis e dos deuses in illo tempore. O tempo lá fora linear torna-se aqui cíclico.

Celebro, entre o Natal e o Ano Novo, as magníficas festas saturninas e solstíciais, que aqui ganham o cariz iniciático das festas dos rapazes. E que nos falam do período de transição, quando o tempo novo, o novo ciclo, é ainda caótico. Mas também nos ensinam a reverenciar este caos primordial, sobretudo pela qualidade e intensidade criativa desta energia primitiva. Entendemos assim por que tudo é permitido aos mascarados que exteriorizam a dança da perpétua renovação. Depois, com as urzes e as giestas cresço devagarinho, saboreando a geada e o luar de Janeiro. Evoco a lua do leite com cordeirinhos recém-nascidos e com eles corro pelos prados de ervinhas novas, bebo nos ribeiros de água cristalina, que ri e corre pelas terras das mouras encantadas, em busca do Douro e do Tâmega, do Tua e do Sabor, e de tantos outros rios de águas sagradas, nas margens dos quais os nossos antepassados edificaram cidadelas como a de Benquerença. E com este sentimento de querer bem e com a generosidade quase arquetípica entro na alma do lugar, na alma do povo. Visito terras antigas: Foz Côa, Moncorvo e Freixo de Espada à Cinta, com as suas encostas cobertas pelas amêndoeiras em flor, numa paisagem indescritivelmente bela. E eis-me já no Equinócio da Primavera, quando o ar se enche de aromas suaves, frescos e florais. E da intensidade do cheiro do folar acabado de cozer que, pela Páscoa, se torna tradição em velhos fornos onde o carvalho e o zimbro, a oliveira e a videira ardem, para que da energia da terra se liberte o poder do fogo, numa alquimia que dá ao pão um sabor ancestral. O tempo continua, na sua passagem vagarosa, recordando-me na véspera de Maio as fogueiras de outrora. Mas, se estas fogueiras se perderam, o mesmo não aconteceu com a tradição das Maias. É reconfortante ver as flores amarelas das giestas penduradas na porta, maravilho-me com as pessoas simples e sábias que nos dizem que também elas participam na cíclica regeneração do cosmos. Delicio-me nos belos recantos do parque de Montesinho, o maior de Portugal, e sinto que de verdade pertenço ali, àquele mundo intemporal e mágico. Vagueio por castros e castelos, sento-me na Domus de Bragança e facilmente visualizo a reunião dos homens bons. Caminho na ponte de Trajano em Chaves e sou de imediato contemporânea dos soldados romanos que também ali atravessam o rio de águas escuras. E com os romanos peregrino ao santuário único de Panóias, em Vila Real. Com o tempo como aliado, permitindo-me viagens por diferentes eras, entro nos jardins do palácio de Mateus e delicio-me com a obra-prima de Nicolau Nasoni. Brinco novamente com o tempo e sento-me nas ruínas de Penas Róias, em Mogadouro. Ah!, que posso eu dizer aos fascinantes Templários? Senhores do Templo, caminhais aqui por velhos caminhos, que outrora foram de Endovélico. E com isso parto para outra paragens, contemplo a Porca de Murça ou o Berrão de Torre D. Chama, entre tantos outros símbolos que se encontram na demanda de Endovélico. Urge reencontar a mitologia lusitana, Atégina espera-nos. Mas, na verdade, a Deusa não foi esquecida, encontramo-la em capelinhas no topo das serranias, relembrando-nos que estamos numa cordilheira sagrada. A serra do Marão é conhecida como montana sagrada desde a antiguidade. Aqui, a terra está sulcada de linhas ley, as forças telúricas marcam a paisagem e as gentes, alterando a percepção e sobre-estimulando os sentidos. Mas não tenho também os sentidos em festas quando, das arribas do douro olho os vales profundos? Miranda, cidade baluarte, expoente máximo da gastronomia transmontana. Bem, a roda do ano chama-me de volta, relembra-me que estou no Solstício de Verão. E, continuando a minha viagem, passo então este dia que antecede a noite mais curta do ano na praia fluvial do Azibo, em Macedo de Cavaleiros, mais logo contemplarei o pôr do sol na serra de Bornes, e depois rumarei à aldeia do Romeu e ao Maria Rita, restaurante que me traz de imediato à memória o meu pai. De novo ganham vida as tuas histórias encantadas nas tardes de estio e nas noites de inverno. Meu senhor transmontano, quem mais se lembraria de me contar a Canção de Rolando? É agora noite, estou nos belos jardins de Mirandela, junto ao rio Tua. E, tal como me ensinaste, recrio o mundo. Ainda me sinto maravilhada com a tua capacidade de transmutar um instantezinho de trazer por casa num momento inesquecível. Com a tua alma de poeta deste ao meu mundo cores maravilhosas. São os teus ensinamentos que me levam a sentir-me feliz neste dia de solstício, marcado pela dor da partida da minha amada Aurora que, contudo, regressa para mim em cada alvorecer. Os dias passam e a véspera de Agosto traz a festa do pão. Partilho o pão em Montalegre, terra que sabiamente me devolve a um tempo fora do tempo e a um espaço fora do espaço. Regresso ao meu Cabeço de Mouros, olho a Torca do outro lado do rio, terra de lendas enigmáticas, de encantos e de mistérios. É o meu mundo. Apanho salva e anis, com um cheiro forte que penetra na pele. E a intensidade do aroma leva-me para outras paragens. Na verdade, não há palavras para descrever o cheiro do mosto no Alto Douro Vinhateiro. Olho o rio, enquanto saboreio o vinho mais conhecido de Portugal que, na verdade, não é do Porto mas de Trás-os-Montes e Alto Douro. É Equinócio de Outono na bela cidade da Régua. Os dias sucedem-se na sua fase decrescente da roda do ano, o mundo tem agora cores em maravilhosos tons de terra, cores de outubro, cheira a terra lavrada e ao fumo das primeiras fogueiras. É chegada a festa das maçãs. E o ciclo termina.

Monday, March 20, 2006

Equinócio da Primavera às 18:26h


yin e yang equilibram-se no mundo que volta ao instante primeiro, fértil e mágico...

Meu amigo, renasce também tu inteiro com a primavera da vida!

Wednesday, March 15, 2006

Tabula Smaragdina

"O Significado e a síntese da obra alquímica surge condensado nas palavras da Tábua Esmeraldina (Tabula Smaragdina). Este texto é uma suposta revelação de Hermes Trismegisto, assim sendo considerado pelos alquimistas medievais. A mais antiga referência a ele foi encontrada num escrito de Dyâbir Ibn Hayyân, datado do século VIII, sabendo-se que São Alberto Magno já tinha conhecimento da sua versão latina. A avaliar pelo estilo, a Tábua Esmeraldina é de origem pré-islâmica e, dado estar em perfeita harmonia com o espírito da tradição hermética, segundo a opinião unânime dos próprios alquimistas, não há razão para duvidar da sua vinculação à origem da hermética, isto muito embora não deixe de ser pertinente pôr-se a questão de saber se o nome de Hermes Trismegisto deve ser atribuído a um homem ou a uma função sacerdotal hermética praticada sob a invocação de Hermes-Thot.

Baseando-nos para tanto no texto latino, transcrevemos de seguida a Tábua Esmeraldina:

1. «Na verdade, decerto e sem dúvida: Quando se pretende obrar os milagres de uma coisa, o de baixo é igual ao de cima e o de cima é igual ao de baixo.»
2. «Assim como todas as coisas procedem do Uno e da meditação do Único, também todas as coisas nascem deste Uno mediante conjugação.»
3. «O seu pai é o Sol, sua mãe é a Lua, o vento carregou-o no seu ventre e a Terra é a sua ama de peito.»
4. «Ele é o pai das maravilhas do mundo inteiro.»
5. «A sua força é perfeita quando se converte em terra.»
6. «Suavemente e com todo o cuidado, separa a terra do fogo e o fino do grosso.»
7. «A fim de receber a força do de cima e a força do de baixo, sobe da Terra ao Céu e daí volta a descer à Terra. Assim possuirás a luz de todo o mundo, assim as trevas se afastarão de ti.»
8. «Esta é a força de todas as forças, pois vence tudo o que é fino e penetra em tudo o que é sólido.»
9. «Por conseguinte, o mundo pequeno acha-se feito à imagem e semelhança do mundo grande.»
10. «Por isso, e deste modo, virão a obrar-se prodigiosas aplicações.»
11. «E por isso me chamam Hermes Trismegisto, pois eu possuo as três partes da sabedoria do mundo inteiro.»
12. «Terminado está assim aquilo que disse sobre a obra do Sol.»

Titus Burckhardt, Alquimia: Significado e Imagem do Mundo

Tuesday, February 21, 2006

"... A fé cria, de certo modo, o seu objecto. E a fé em Deus consiste em criar Deus e, como é Deus quem nos dá a fé n'Ele, é Deus que se está a criar a si mesmo, continuamente, em nós próprios."

Miguel de Unamuno, Do Sentimento Trágico da Vida.

A Demoniac by Joseph Middeleer, 1893.


Friday, February 17, 2006

Miguel de Unamuno, Do Sentimento Trágico da Vida

"Aumentando o amor, esta ânsia ardorosa de ir mais longe e mais fundo vai-se estendendo a tudo o que se vê, a tudo o que se vai compadecendo de tudo. À medida que vais penetrando em ti mesmo, e mais fundo desces em ti mesmo, vais descobrindo a tua própria futilidade, que não és tudo o que não és, que não és o que gostarias de ser, que, em suma, não és mais do que uma ninharia. E ao tocares no teu próprio nada, ao não sentires o teu fundo permanente, ao não atingires nem a tua própria infinitude nem, mesmo, a tua eternidade, tendo lástima de todo o coração a ti próprio, inflamas-te em doloroso amor por ti mesmo, matando o que se chama amor-próprio, e não é mais do que uma espécie de deleite sensual de ti mesmo, algo assim como a carne da tua alma a gozar-se a si mesma.
O amor espiritual a si mesmo, a compaixão que uma pessoa adquire para consigo própria, poderá, porventura, chamar-se de egotismo; mas é o que de mais oposto existe ao vulgar egoísmo. Porque deste amor ou compaixão de ti próprio, deste intenso desespero, porque, do mesmo modo que não eras antes de nasceres, também depois de morreres não serás, passas a ter compaixão, isto é, a amar todos os teus semelhantes e irmãos, em aparência miseráveis sombras que desfilam do seu nada ao seu nada, chispas de consciência que brilham um momento nas infinitas e eternas trevas. E dos demais homens, teus semelhantes, passando pelos que são mais semelhantes a ti, pelos que contigo convivem, vais-te compadecer de todos os que vivem, e até daquilo que, porventura, não vive, mas existe. Aquela longínqua estrela que brilha durante a noite, lá no alto, há-de apagar-se algum dia, e tornar-se-á pó, e deixará de brilhar e de existir. E, como ela, todo o céu estrelado. Pobre céu!
E se é doloroso ter de deixar de ser algum dia, mais doloroso seria, talvez, continuar a ser sempre o mesmo, e só o mesmo, sem poder ser outro ao mesmo tempo, sem poder ser ao mesmo tempo tudo o resto, sem poder ser tudo.
Se olhares para o universo do modo mais próximo e profundo que puderes olhar, que é em ti próprio; se sentires, e não só comtemplares, todas as coisas na tua consciência, onde todas elas deixaram a sua dolorosa marca, atingirás as profundezas do tédio da existência, o poço da vaidade das vaidades. E é assim como chegarás, a compadecer-te de tudo, ao amor universal.
Para amares tudo, para teres compaixão de tudo, do humano e extra-hunamo, do que vive e não vive, é necessário que sintas tudo dentro de ti mesmo, que personalizes tudo. Porque o amor personaliza tudo quanto ama, tudo aquilo de que se compadece. Só nos compadecemos, isto é, só amamos, o que se nos assemelha, e assim aumenta a nossa compaixão, e com ela o nosso amor pelas coisas, à medida que descobrimos as semelhanças que têm connosco. Ou, melhor, é o nosso próprio amor, que por si só tende a crescer, o que nos revela essas semelhanças. Se consigo compadecer-me e amar a pobre estrela que um dia desaparecerá do céu, é porque o amor, a compaixão, me faz sentir nela uma consciência, mais ou menos obscura, que a leva a sofrer por não ser mais do que uma estrela e por ter de deixar de o ser, um dia. Pois toda a consciência o é de morte e de dor.
Consciência, conscientia, é conhecimento partilhado, é consentimento, e con-sentir é con-padecer.
O amor personaliza tudo o que ama. Só é possível apaixonarmo-nos por uma ideia personalizando-a. E quando o amor é tão grande e tão vivo e tão forte e transbordante que tudo ama, então, ele tudo personaliza, e descobre que o Todo total, o Universo, também é Pessoa. Tem uma Consciência, Consciência que, por sua vez, sofre, se compadece e ama, isto é, é consciência. E esta Consciência do Universo, que o amor descobre personalizando tudo o que ama, é o que chamamos Deus. E assim a alma compadece-se de Deus e sente que Ele se compadece dela, ama-o e sente-se amada por Ele, dando abrigo à sua miséria no seio da miséria eterna e infinita, que é, ao eternizar-se e tornar-se infinita, a própria felicidade.
Deus é, pois, a personalização do Todo, é a Consciência eterna e infinita do Universo. Consciência presa da matéria e esforçando-se por se libertar dela. Personalizamos o Todo para nos salvarmos do Nada, e o único mistério verdadeiramente misterioso é o mistério da dor.
A dor é o caminho da consciência, e é por ela que os seres vivos atingem a consciência de si. Porque ter consciência de si mesmo, ter personalidade, é saber-se e sentir-se distinto dos outros seres, e só se consegue sentir essa distinção com o choque, com a dor maior ou menor, com a sensação do próprio limite. A consciência de si mesmo não é mais do que a consciência da própria limitação. Sinto-me eu mesmo ao sentir que não sou os outros; saber e sentir até onde sou é saber onde deixo de ser, e a partir de onde não sou.
E como saber que se existe não sofrendo nem muito nem pouco? Como voltar sobre si, lograr consciência reflexa, senão através da dor? Quando se tem prazer, esquecemo-nos de nós próprios, de que existimos, entramos noutra coisa, alienamo-nos. E só nos ensimesmamos, voltamos a nós próprios, a sermos nós, na dor."

p.s. Já agora, deixo o link para o lugar dos meus sonhos e devaneios: Clareirazinha. :)

Wednesday, February 15, 2006

Um pensamento de Aldous Huxley

"Estava eu sentado, perto do mar, a ouvir com pouca atenção um amigo meu que falava arrebatadamente de um assunto qualquer, que me era apenas fastidioso. Sem ter consciência disso, pus-me a olhar para uma pequena quantidade de areia que entretanto apanhara com a mão; de súbito vi a beleza requintada de cada um daqueles pequenos grãos; apercebia-me de que cada pequena partícula, em vez de ser desinteressante, era feito de acordo com um padrão geométrico perfeito, com ângulos bem definidos, cada um deles dardejando uma luz intensa; cada um daqueles pequenos cristais tinha o brilho de um arco-íris... Os raios atravessavam-se uns aos outros, constituindo pequenos padrões, duma beleza tal que me deixava sem respiração... Foi então que, subitamente, a minha consciência como que se iluminou por dentro e percebi, duma forma viva, que todo o universo é feito de partículas de material, partículas que por mais desinteressantes ou desprovidas de vida que possam parecer, nunca deixam de estar carregadas daquela beleza intensa e vital. Durante um segundo ou dois, o mundo pareceu-me uma chama de glória. E uma vez extinta essa chama, ficou-me qualquer coisa que nunca mais esqueci que me faz pensar constantemente na beleza que encerra cada um dos mais ínfimos fragmentos de matéria à nossa volta."

The Summer Moon – Bait Gatherers by Charles Lees (1800-1880).


Tuesday, February 14, 2006

Viagem Interior

Esta é a história do rabino Eisik, contada por Henrich Zimmer, e que eu encontrei num livro de Mircea Eliade. Vou transcrever:

"Esse piedoso rabino, Eisik de Cracóvia, teve um sonho que lhe mandava que fosse a Praga: aí, sob a grande ponte que leva ao castelo real, descobriria um tesouro escondido. O sonho repetiu-se três vezes, e o rabino decidiu-se a partir. Chegado a Praga, encontrou a ponte, mas guardada por sentinelas; Eisik não ousou investigar. Girando sempre pelos arredores, atraiu a atenção do capitão dos guardas; este perguntou-lhe amavelmente se perdera alguma coisa. Com ingenuidade, o rabino contou-lhe o seu sonho. O oficial explodiu em gargalhadas: «Realmente, homenzinho!», disse-lhe ele, «tu usaste os teus sapatos para percorrer todo este caminho simplesmente por causa de um sonho? Que pessoa, de posse da sua razão, acreditaria num sonho?» O próprio oficial ouvira uma voz em sonhos: «Falava-me de Cracóvia, ordenando-me que fosse lá e procurasse um grande tesouro na casa de um rabino cujo nome era Eisik, filho de Jekel. O tesouro devia ser descoberto num recanto poeirento, onde estava enterrado por detrás do fogão.» Mas o oficial não tinha qualquer fé nas vozes escutadas em sonhos: era uma pessoa de juízo. O rabino inclinou-se profundamente, agradeceu-lhe e apressou-se a regressar a Cracóvia. Cavou no canto abandonado da casa e descobriu o tesouro que pôs fim à sua miséria."

E agora os comentários de Heirich Zimmer: "Assim, o verdadeiro tesouro, o que põe fim à nossa miséria e às nossas provações, nunca está muito longe, não é preciso ir buscá-lo a um país longínquo, jaz enterrado nos recessos mais íntimos da nossa própria casa, isto é, do nosso próprio ser. Está atrás do fogão, o centro que fornece de vida e calor, que comanda a nossa existência, o coração do nosso coração, se soubermos cavar. Mas há então o facto estranho e constante de que é só após uma viagem piedosa a uma região longínqua, num país estrangeiro, sobre nova terra, que o significado dessa voz interior que guia a nossa procura poderá revelar-se-nos. E a esse facto estranho e constante junta-se outro: aquele que nos revela o sentido da nossa misteriosa viagem interior deve ser, ele mesmo, um estrangeiro, doutra crença ou de outra cultura."

Tuesday, February 07, 2006

Imanência versus Transcendência

Apontando directamente para o coração humano,
olhando profundamente para a verdadeira natureza do ser,
estamos a ser instantaneamente iluminados!


Na senda da espiritualidade, sigo o meu próprio caminho que, acima de tudo, se define pela tentativa de olhar cada coisa e ver a sua própria realidade. A sua realidade diferente, isto é, única e distinta do todo. Assim, o meu caminho é o caminho da procura da inocência. Da visão inocente. Mas quem vê inocentemente? Aquele que vê para lá dos rótulos. Aquele que vê a realidade intrínseca de cada coisa. Aquele que vê a realidade tanto na sua natureza transcendente, como na sua natureza imanente.

Sei bem que estamos mais habituados a lidar com um caminho espiritual que não procura a realidade inerente ao homem, mas sim a realidade que o transcende. A questão é: afinal o que é que nós vemos, se apenas nos concentrarmos no transcendente?

Os cristãos crêem que o mundo é uma criação de Deus. Pronto, temos todas as coisas devidamente rotuladas. Que pode, então, um cristão ver? Nada para além da própria criação. O cristão dá a cada elemento do mundo não o seu próprio e intrínseco valor, mas o valor que está subjacente ao facto de ser uma criação de Deus. Na realidade, tudo começa e acaba aí. O cristão vê, a cada instante, a transcendência. E mais nada.

O budismo faz algo muito parecido, embora sem a "ajuda" de Deus. Ao assumir que cada elemento é indissociável do todo, já não pode ver o elemento em si. Vê apenas a sua participação no todo. Vê também, a cada instante, a transcendência. E mais nada.

Vejamos o que nos diz a este respeito o Sutra Imutável: "Os fenómenos da vida podem comparar-se a um sonho, a um fantasma, a uma bolha de ar, a uma sombra, ao orvalho cintilante, ao brilho do relâmpago, e é assim que os devemos contemplar."

Na verdade, tanto os cristãos como os budistas procuram, não a realidade intrínseca ao próprio homem, mas a realidade que transcende o homem. Assim, podemos dizer que cheguem onde chegarem, nunca chegarão à verdadeira natureza humana, pois o seu caminho começa logo por transcender essa mesma natureza humana.

Assim, no cristianismo temos um êxtase onde o espírito se transcende a si próprio em Deus; no budismo temos um êxtase onde o espírito se transcende a si próprio em si. Mas, em ambos, temos a transcendência. A necessidade da transcendência...

O que está na origem da necessidade da transcendência? O conceito de imperfeição. O homem sendo imperfeito, necessita de se transcender para chegar à perfeição. Bom, mas e se o homem já for perfeito e apenas viver a ilusão da imperfeição?

Pois, se o homem já for perfeito, não precisa de se libertar da ilusão da imperfeição pelo caminho da transcendência, precisa do caminho da imanência. Isto é, do regresso à sua verdadeira natureza, à sua essência. Mas sem perder as suas qualidades humanas. Digamos que o homem atingiria então a perfeição, através do verdadeiro conhecimento da sua própria natureza humana, sem contudo perder essa mesma natureza.

Neste caso, teríamos a absoluta integração do homem com a natureza a que pertence, mas sempre como elemento humano. Preservaríamos a sua natureza humana. Dito de outra forma, o homem perfeito integra-se na natureza perfeita, mas integra-se mantendo a sua qualidade humana intrínseca que é, aliás, onde reside a sua perfeição.

O Homem, no seu estado humano perfeito, vê a perfeita natureza.

Este é o caminho da espiritualidade que vem com a vida, com a vida quotidiana concreta... A mão que abre a janela para deixar entrar a luz na casa e dentro de nós. O alimento que se cozinha amorosamente e amorosamente se recebe, como uma dádiva da vida. A espiritualidade que está em cada olhar, em cada sorriso, em cada rosto, quando vemos de facto cada rosto e cada sorriso e cada olhar. Quando os vemos por aquilo que são. Quando aquele olhar é para nós todo o universo. Quando vemos o divino na sua qualidade imanente.

Mas, por outro lado, sinto que também preciso da união com o cosmos, preciso fundir-me com o próprio Universo. E esse é o caminho da transcendência. Espalhamo-nos pelo universo e sentimos outro nível de espiritualidade. Encontramos o divino na sua qualidade transcendente.

Assim, sigo a via do meio, mas dou mais relevo à via imanente. Sigo o caminho que começa em todo o lado e a cada instante, e não termina em lugar nenhum. Todavia, conduz a um lugar verdadeiro...


p.s. este é um texto antigo, um dos primeiros posts que coloquei nos foruns do sapo. Aqui fica, de novo, devidamente reciclado. :)

Wednesday, February 01, 2006

Festival das Luzes

Nesta noite de 1 para 2 de Fevereiro, celebro Imbolc, o primeiro festival da primavera. Neste festival, que se há-de prolongar já no dia 2, cultuo a promessa da primavera da vida, na natureza e em mim. Repara que a primavera ainda não aconteceu verdadeiramente, contudo já a celebro. Celebro a vida que renasce e que acredito vigorará cheia de força. Sim, celebro a promessa da primavera... celebro a minha capacidade de acreditar... :)

Neste sabbat das luzes, em honra da luz que cresce, acenderei algumas velas, acreditando que com esse gesto dou força à ainda jovem luz do mundo... e dou também força àquilo que quero que aconteça e ainda não aconteceu, dou força à minha fé... :)

Que mais? Olha, eu preparo uma atmosfera festiva com motivos alegres e até um pouco infantis, pois neste festival celebra-se o símbolo arquetípico da criança... que nasceu no solstício de inverno e agora brinca e cresce cheia de vida. :)

Claro que não esqueço uma sobremesa à base de leite ou natas, pois foi a lua do leite das ovelhas que deu origem e nome ao sabbat. :) E pronto, é só isso.

Em Imbolc, o ritual cumpre-se se formos capazes de celebrar a criança que há em nós, e se simplesmente nos lembrarmos da luz do mundo que cresce e da natureza que floresce... :)


Termino com uma frase de Richard Bach, em Fernão Capelo Gaivota:

Sonha o que te atreveres a sonhar.
Sê o que quiseres ser.
Vai onde quiseres ir.
Vive.

Tuesday, January 24, 2006

Pequenas transcrições d`A lenda de Bagger Vance, um filme de Robert Redford

Bagger – O truque é encontrar o seu swing...
Junuh – O que foi que disse?
Bagger – Perdeu o seu swing... temos de encontrá-lo. Está algures... em harmonia com tudo o que existe. Com tudo o que existiu. Com tudo o que existirá.

...

Bagger a Hardy:
- Dentro de cada um de nós existe um swing próprio, autêntico. Algo com que nascemos, que é só nosso, que não se pode ensinar ou aprender. Algo que não podemos esquecer. Mas ao longo do tempo, o mundo pode privar-nos desse swing. Fica enterrado dentro de nós, sob o peso das desculpas que arranjamos para o que devíamos ter feito. Algumas pessoas até se esquecem de como era o seu swing...

...

Ainda Bagger Vance, a propósito de um jogador de golfe excepcional, para Junuh:
- Repare como ele pratica o seu swing. É como se estivesse à procura de algo. E depois encontra. Assegura-se que alcançou o estado de espírito desejado. Sente que está concentrado. Tem muitos tipos de pancadas por onde escolher... Mas só há uma pancada que está em perfeita harmonia com o "Campo". Uma pancada que é a sua... autêntica pancada. E essa pancada vai escolhê-lo. Há uma pancada perfeita ali adiante à nossa espera. Só temos de deixar-lhe o caminho livre. Deixá-la escolher-nos... Repare nele. Ele está no "Campo". Vê aquela bandeira? É um dragão que tem que abater... Mas se olhar com atenção, verá o local onde as marés, as estações e a rotação da terra... todas se unem. E tudo o que existe torna-se num todo. Tem que percorrer esse local com a alma, Junuh.

...

Bagger e Junuh:
Bagger – Estou a falar num jogo que não se ganha, joga-se.
Junuh – Tu não compreendes.
Bagger – Não preciso de compreender... Não há um único ser na terra que não carregue um fardo sem saber porquê. Não é o único... Mas já carrega esse fardo há bastante tempo. Está na altura de libertar-se dele.
Junuh – Não sei como!
Bagger – Pode escolher: desistir ou recomeçar.
Junuh – Recomeçar?
Bagger – Caminhar.
Junuh – Onde?
Bagger – Voltar ao que sempre foi. E depois quedar-se ali. Quieto. Muito quieto. E recordar.
Junuh – Foi há muito tempo.
Bagger – Não, foi há instantes. Mas já é tempo de abandonar os seus fantasmas. Tempo de optar.
Junuh – Não consigo.
Bagger – Consegue sim. Lembre-se que não está sozinho. Eu estou aqui. Sempre estive... Agora jogue o jogo. O seu jogo. Aquele que só você pode jogar. Aquele que lhe foi dado quando veio a este mundo... Lembre-se do seu swing...

...

Wednesday, January 04, 2006

Estaremos a seguir uma via espiritual, quando nos centramos em nós próprios?

Não me parece que cada um de nós seja uma ilha. Tal como dizia Heinlein, somos quanto muito bocadinhos de continentes. Nós não vivemos isolados, interagimos constantemente com outros e com o mundo à nossa volta. E as nossas acções tem que ser pensadas em função do mundo em que vivemos, temos que estar conscientes de que as nossas acções vão necessariamente provocar uma reacção nos outros, da qual somos em parte responsáveis.

Um caminho em que estamos voltados para nós próprios é certamente um caminho legitimo, mas será espiritual?

Bem, vou citar o Dalai-Lama no livro Ética para o Novo Milénio:

"Penso que há uma importante distinção a fazer entre religião e espiritualidade. Considero que religião diz respeito à crença numa forma de salvação específica a cada tradição, um aspecto dessa religião consiste na crença numa realidade metafísica ou sobrenatural que inclua, por exemplo, a noção de céu ou de nirvana. Ligam-se a ela os ensinamentos religiosos ou dogmas, os rituais, a oração, etc. Considero que espiritualidade diz respeito ao cuidado a ter com as qualidades do espírito humano como o amor e a compaixão, a paciência, a tolerância, o perdão, o contentamento, o sentido de responsabilidade e da harmonia, que trazem felicidade para si e para os outros. O ritual e a oração, bem como o nirvana e a salvação, estão directamente ligados à fé religiosa mas estas qualidades interiores não. Por conseguinte, não há razão para que um indivíduo não as desenvolva, mesmo num grau elevado, sem depender de qualquer sistema religioso ou metafísico. É a razão pela qual afirmo, por vezes, que talvez possamos dispensar a religião. Mas o que não podemos dispensar são estas qualidades espirituais básicas.

Aqueles que praticam uma religião podem, e com razão, dizer que tais qualidades ou virtudes, são frutos de um esforço religioso genuíno e que, por conseguinte, a religião tem tudo a ver com esse desenvolvimento e com o que se pode chamar de prática espiritual. Mas deixem-me ser claro neste ponto. A crença religiosa implica uma prática espiritual. Porém, parece que há muita confusão, tanto entre crentes como não crentes, sobre em que consiste a prática espiritual. A característica comum a todas as qualidades que descrevi como "espirituais" é o interesse pelo bem-estar dos outros. Quando pensamos nessas qualidades, descobrimos que cada uma delas se define graças a uma preocupação implícita pelo bem-estar alheio. Mais ainda: aquele que tem compaixão, amor, paciência, tolerância, perdão, etc., reconhece, pelos menos até certo ponto, o impacte potencial das suas acções nos outros e modela o seu comportamento em função disso. Por conseguinte, a prática espiritual, de acordo com esta descrição, implica agirmos com a preocupação do bem-estar alheio. Mas implica também transformarmo-nos a nós próprios de forma a estarmos mais facilmente dispostos a fazê-lo. Falar de prática espiritual em termos que não estes não tem significado."

Sim, creio que o caminho passa por transformarmo-nos a nós próprios no sentido de agirmos cada vez mais com a preocupação do bem estar alheio, mesmo sabendo que o mundo é uma ilusão, mesmo tendo percepção de que a realidade tal como a vemos não existe.

Bom, mas já que falo numa realidade ilusória, deixem-me dizer que mesmo que teorizemos que o mundo material é ilusão, creio que isso apenas nos permite concluir que se há uma realidade que está para lá da ilusão, será uma realidade vazia de matéria. Não creio que possamos dizer que a realidade última é o vazio, como se teoriza por exemplo na Magia do Caos, não me parece que isso faça sentido. Terá que ser vazia de matéria, concordo. Mas isso é diferente.

A Magia do Caos aponta-nos um caminho onde tudo nos é permitido. Contudo, parece-me que num caminho onde tudo nos é permitido, porque tudo é ilusório, glorificamos o ego. E não será o ego também uma ilusão, uma vez que é apenas sustentado pelo mundo ilusório? Mas se a realidade última fosse o vazio, também a consciência seria uma ilusão, não?... Eu acho que não, porque a consciência, tal como o amor e a compaixão, são na sua essência realidades vazias de matéria, ou seja, na sua essência não pertencem ao universo da realidade ilusão.

Termino este post com outra questão: já pensaram que talvez seja o caminho em si que importa e não a meta? Talvez a meta apenas faça sentido por nos induzir à caminhada. Talvez seja este o meio de fazer a tal jangada que outros nos diziam ser tudo o que precisávamos para chegar à outra margem. Pergunto eu: uma jangada de consciência, à custa do ego? Uma jangada de não-matéria, à custa da matéria?