Wednesday, January 04, 2006

Estaremos a seguir uma via espiritual, quando nos centramos em nós próprios?

Não me parece que cada um de nós seja uma ilha. Tal como dizia Heinlein, somos quanto muito bocadinhos de continentes. Nós não vivemos isolados, interagimos constantemente com outros e com o mundo à nossa volta. E as nossas acções tem que ser pensadas em função do mundo em que vivemos, temos que estar conscientes de que as nossas acções vão necessariamente provocar uma reacção nos outros, da qual somos em parte responsáveis.

Um caminho em que estamos voltados para nós próprios é certamente um caminho legitimo, mas será espiritual?

Bem, vou citar o Dalai-Lama no livro Ética para o Novo Milénio:

"Penso que há uma importante distinção a fazer entre religião e espiritualidade. Considero que religião diz respeito à crença numa forma de salvação específica a cada tradição, um aspecto dessa religião consiste na crença numa realidade metafísica ou sobrenatural que inclua, por exemplo, a noção de céu ou de nirvana. Ligam-se a ela os ensinamentos religiosos ou dogmas, os rituais, a oração, etc. Considero que espiritualidade diz respeito ao cuidado a ter com as qualidades do espírito humano como o amor e a compaixão, a paciência, a tolerância, o perdão, o contentamento, o sentido de responsabilidade e da harmonia, que trazem felicidade para si e para os outros. O ritual e a oração, bem como o nirvana e a salvação, estão directamente ligados à fé religiosa mas estas qualidades interiores não. Por conseguinte, não há razão para que um indivíduo não as desenvolva, mesmo num grau elevado, sem depender de qualquer sistema religioso ou metafísico. É a razão pela qual afirmo, por vezes, que talvez possamos dispensar a religião. Mas o que não podemos dispensar são estas qualidades espirituais básicas.

Aqueles que praticam uma religião podem, e com razão, dizer que tais qualidades ou virtudes, são frutos de um esforço religioso genuíno e que, por conseguinte, a religião tem tudo a ver com esse desenvolvimento e com o que se pode chamar de prática espiritual. Mas deixem-me ser claro neste ponto. A crença religiosa implica uma prática espiritual. Porém, parece que há muita confusão, tanto entre crentes como não crentes, sobre em que consiste a prática espiritual. A característica comum a todas as qualidades que descrevi como "espirituais" é o interesse pelo bem-estar dos outros. Quando pensamos nessas qualidades, descobrimos que cada uma delas se define graças a uma preocupação implícita pelo bem-estar alheio. Mais ainda: aquele que tem compaixão, amor, paciência, tolerância, perdão, etc., reconhece, pelos menos até certo ponto, o impacte potencial das suas acções nos outros e modela o seu comportamento em função disso. Por conseguinte, a prática espiritual, de acordo com esta descrição, implica agirmos com a preocupação do bem-estar alheio. Mas implica também transformarmo-nos a nós próprios de forma a estarmos mais facilmente dispostos a fazê-lo. Falar de prática espiritual em termos que não estes não tem significado."

Sim, creio que o caminho passa por transformarmo-nos a nós próprios no sentido de agirmos cada vez mais com a preocupação do bem estar alheio, mesmo sabendo que o mundo é uma ilusão, mesmo tendo percepção de que a realidade tal como a vemos não existe.

Bom, mas já que falo numa realidade ilusória, deixem-me dizer que mesmo que teorizemos que o mundo material é ilusão, creio que isso apenas nos permite concluir que se há uma realidade que está para lá da ilusão, será uma realidade vazia de matéria. Não creio que possamos dizer que a realidade última é o vazio, como se teoriza por exemplo na Magia do Caos, não me parece que isso faça sentido. Terá que ser vazia de matéria, concordo. Mas isso é diferente.

A Magia do Caos aponta-nos um caminho onde tudo nos é permitido. Contudo, parece-me que num caminho onde tudo nos é permitido, porque tudo é ilusório, glorificamos o ego. E não será o ego também uma ilusão, uma vez que é apenas sustentado pelo mundo ilusório? Mas se a realidade última fosse o vazio, também a consciência seria uma ilusão, não?... Eu acho que não, porque a consciência, tal como o amor e a compaixão, são na sua essência realidades vazias de matéria, ou seja, na sua essência não pertencem ao universo da realidade ilusão.

Termino este post com outra questão: já pensaram que talvez seja o caminho em si que importa e não a meta? Talvez a meta apenas faça sentido por nos induzir à caminhada. Talvez seja este o meio de fazer a tal jangada que outros nos diziam ser tudo o que precisávamos para chegar à outra margem. Pergunto eu: uma jangada de consciência, à custa do ego? Uma jangada de não-matéria, à custa da matéria?

1 comment:

Cathal Foster said...

Nao direi que sejamos ilhas mas igulmente partes de continente nao somos, poderemos talvez ser ante como que em jangadas a flutuar no mar.