Friday, September 05, 2008

Aos homens de outros tempos, àqueles que viviam no cimo das montanhas...

Aceitar a nossa verdadeira herança é tornarmo-nos outros. É aceitar que tudo no nosso mundo se vai desintegrar e refazer. Que perderemos o conforto daquilo que agora nos é familiar. Que ficaremos também nós no cimo do monte, a sós como um mundo onde todas as distâncias e todas as proporções se alteram.

Rainer Maria Rilke diz-nos que: "estas mudanças geram subitamente muitas outras e, como acontecia ao homem no cimo da montanha, nascem então percepções invulgares e sensações estranhas que parecem exceder o limite do suportável. Mas também elas têm por força de ser vividas. Temos de aceitar a nossa existência, por mais longe que ela chegue; tudo nela tem de ser possível, mesmo o inaudito. É no fundo esta a única forma de coragem que nos é exigida: que encaremos ousadamente o mais estranho, o mais fabuloso, o mais inexplicável. Que os homens tenham sido cobardes a este respeito trouxe incontáveis danos à vida; as experiências a que se chama "aparições", o "mundo dos espíritos", a morte, todas estas coisas tão familiares foram expulsas da vida por uma resistência quotidiana, de tal forma que os sentidos com que as poderíamos apreender regrediram. Já para não falar de Deus. Mas o medo do inexplicável não empobreceu apenas a existência do indivíduo, cerceou também as relações entre uma pessoa e outra, como se as retirasse do leito do rio das possibilidades infinitas e as levasse para o terreno baldio das margens onde nada acontece. Pois não é apenas por inércia que as relações humanas são tão indizivelmente monótonas, repetindo-se de caso para caso sem renovação, é porque os homens receiam qualquer experiência que julguem ultrapassar as suas forças. Mas só quem está preparado para tudo, só quem nada exclui, nem mesmo o mais enigmático, viverá como uma coisa viva a relação com outra pessoa e irá ele próprio até ao limite da sua existência. Pois se concebermos a existência do indivíduo como um espaço maior ou mais pequeno, percebemos que muitos conhecem apenas um canto do seu espaço, um lugar à janela, uma passadeira por onde caminham para trás e para diante."

De que temos medo afinal? Rilke bem que insiste connosco que "não temos razão para desconfiar do nosso mundo porque ele não está contra nós. Se o mundo tem sustos, são os nossos sustos, se tem abismos, são abismos que nos pertencem, se tem perigos, temos que tentar amá-los. E se guiarmos a nossa vida pelo princípio de nos atermos sempre ao difícil, veremos que o que agora ainda nos parece estranho se tornará familiar e leal. Como podíamos nós esquecer os velhos mitos que estão na origem de todos os povos; o mito do dragão que no último momento se transforma em princesa; os dragões da nossa vida são porventura todos eles princesas que apenas esperam ver-nos belos e valorosos por uma vez. No fundo, o que nos parece terrível talvez seja indefeso, talvez espere a nossa ajuda."

1 comment:

Ana said...

"...o que agora ainda nos parece estranho se tornará familiar e leal..." e este é o primeiro passo. deixar que o que é estranho se torne familiar. :) Beijinhos