Wednesday, April 21, 2010

As Maias – Ernesto Veiga de Oliveira

"É clássica a hipótese que procura a filiação das consagrações florais do Primeiro de Maio nas festas públicas romanas das «florália», dedicadas a Flora, que celebravam o renascer da vida na Primavera; mas o parentesco entre essas festividades e as celebrações actuais do Primeiro de Maio é muito problemático e não se pode estabelecer em termos gerais e concretos; o cenário cerimonial de umas e outras pouco tem em comum, e é difícil de admitir entre elas qualquer relação de derivação global directa. A ideia de que se deve ajudar ritualmente o renascer das forças da Natureza no princípio da Primavera tem contudo carácter universal, e cremos legítimo por vezes interpretar estas cerimónias – que existem em termos afins em inúmeros povos e civilizações – de acordo com tal ideia.

O Primeiro de Maio corresponde à noite de Valpurgis, que a demonologia medieval germânica povoou de bruxas invisíveis que andavam no ar e praticavam as suas obras infernais, certamente por herança da crença pagã nos espíritos nocivos do Inverno e da Morte, de que era necessário purificar ritualmente a terra no início do ano agrário. E de facto, na Alemanha, na Áustria, na Suécia, na Inglaterra, etc., faziam-se nessa noite grandes fogueiras paras as queimar; por vezes queimava-se um boneco, que as figurava; em alguns casos tinham lugar combates entre a Rainha do Inverno e a de Maio; na Escócia, além das fogueiras comiam-se bolos cerimoniais; e em várias partes, punham-se flores às portas dos estábulos, para preservar o gado dos malefícios das bruxas.

Não é portanto de excluir a hipótese de que todas estas formas beberam a sua origem em complexos rituais próprios desses remotíssimos cultos agrários, dos quais derivariam as próprias festas romanas e celtas, e as crenças associadas à noite de Valpurgis: mas tais formas, além de terem sofrido um sem-número de outras influências de ordem vária, evoluíram e apresentam-se de modo diferente nos diversos países.

Em Portugal, as «Maias» comemoram-se, de um modo geral, por duas formas principais:

I – Consagrações florais, por todo o País, pela aposição de certas flores nas portas, janelas, aldrabas, das casas e currais, nas cancelas, animais e barcos, hoje mesmo em camionetas e locomotivas.

No noroeste, a flor característica das «Maias» é a giesta, só ou com outras, em ramos ou em coroas, por vezes de papel, com fitas e laços; e a celebração, ali, consta apenas dessa costumeira. (...)

Numa versão corrente, esta prática explica-se como comemoração do facto que consta da lenda segundo a qual «quando Cristo andava pelo mundo, foi procurado pelos judeus para o matarem, e como estes o vissem entrar para uma casa, colocaram-lhe à porta um ramo de giestas, para no dia seguinte o prenderem. Nesse dia, porém, todas as casas da povoação apareceram marcadas, e os judeus não puderam dar com ele». (...)

Em Trás-os-Montes, no Leste Beirão e nas províncias do Sul, o costume das «Maias» existe a par com outras figurações floridas, com aspectos e sentidos muito diferentes. Em Montalegre e em certas aldeias do Barroso, as pastoras neste dia enfeitavam o melhor godalho do rebanho com fitas e flores, correndo a povoação a cantar e a dançar em volta dele, com as suas pandeiretas e castanhetas, pendurando-lhe por vezes uma laranja em cada chifre e pondo-lhe à cabeça uma boneca a fiar, e levando-o à frente do rebanho conduzido por duas delas vestidas de branco. Em vila Real, além das giestas às portas, as pessoas percorrem as ruas com um rapaz vestido com as mesmas plantas – o «Maio moço» –, que canta versos alusivos à ocasião, a que a comitiva responde, e que em várias terras também pede donativos. E em Bragança encontramos igualmente o «Maio moço» vestido de giestas, e as pessoas seguem-no, cantando e dançando em volta dele, e outras práticas semelhantes a estas.

Na Beira Alta e em numerosos lugares da Beira Baixa, são também rapazes vestidos de giestas quem personifica o «Maio»; mas eles aqui parecem sobretudo centralizar o peditório cerimonial que se faz neste dia, com o fim principal de obter donativos, em dinheiro ou nomeadamente em castanhas, que constituem um dos manjares específicos mais importantes desta celebração, a que adiante nos referiremos. (...)

II – Manjares cerimonias – a castanha, em Trás-os-Montes e nas Beiras interiores; bolos especiais, na Estremadura e no Alentejo; e «queijinhos de Maio», que são grandes bolos de figo seco, amêndoa, açúcar e canela, no Algarve. De um modo geral, estes manjares devem-se comer logo ao acordar, e o mais cedo possível. Em diversas áreas, fazem-se merendas nos campos, que por vezes constam de alguns daqueles manjares.

A aposição das flores faz-se na noite da véspera, como é regra no cenário de várias celebrações cíclicas; aqui, parece ter-se em vista que as casas estejam floridas quando começa o dia, para que o «Maio» ou o «Burro» não entrarem. Além disso, há um preceito geral matutino, que manda levantar cedo, para que o Maio não entre, e, em certas partes, faz-se à porta dos dorminhocos surriada com um burro. Com maior força ainda é o preceito em relação à manducação dos manjares cerimoniais do dia, que não só devem ser a primeira colação do dia, mas mesmo serem ingeridos especialmente cedo, também para que o «Maio» ou «Burro» não «mordam», «saltem» ou «entrem» – precisamente, portanto, a mesma combinação que vimos a respeito da aposição das flores, que devem por isso representar práticas convergentes embora diferentes, tendo em vista o mesmo fim, regendo-se pela mesma lei.

O significado daquelas entidades, evocadas numa espécie de ameaça, é claramente dado em certos casos: a «entrada» do «Burro» ou do «Maio» identifica-se com as maleitas.

O «Burro» ou o «Maio» são pois uma entidade nociva, cujo malefício se pretende conjurar com a aposição de flores ou a manducação de certas espécies, antes mesmo ou logo ao começar o dia.

As figurações floridas, flores ou personagens enfeitadas com flores, ambulantes ou hieráticas, podem pois talvez na sua origem mais remota ter represenatdo corporizações do espírito fecundo da Primavera, Espíritos da Vegetação, na terminologia clássica, que se opõem às forças negativas do Inverno, latentes na ideia de entidade maléfica – o «Burro», o «Maio», ou os «Judeus» na lenda cristã – embora na realidade a memória do povo nenhuma ideia concreta e expressa conserve nesse sentido. As manducações cerimoniais, paralelamente, seriam consagrações, também em vista da fertilidade, de certas espécies cosmestíveis representativas – a castanha, outrora alimento basilar nas regiões nortenhas; os «queijinhos» de figo e amêndoa no Algrave –, cujo desenvolvimento e abundância convinha estimular por um repasto ritual. (...)

Nos variados aspectos, por vezes tão distintos, das celebrações do Primeiro de Maio, ter-se-ia pois operado um sincretismo de práticas e crenças, talvez de origens diferentes, mas todas convergentes, ramificações de uma mesma ideia, com idêntico sentido de purificação e exaltação da fertilidade e abundância, por meio de actos diversos de magia ritual imitativa, propiciatórios ou profilácticos.

De facto, a celebração, entre nós, era associada a uma ideia pagã ainda no tempo de D. João I, que numa carta de 1385 a considera como um costume diabólico e um crime de idolatria."

Festividades Cíclicas em Portugal, Ernesto Veiga de Oliveira

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