Saturday, May 28, 2011

Serpente versus Vara

Começo com a história da moura e do moleiro de Nozelos, retirada do livro A Mitologia dos Mouros, de Alexandre Parafita:

«Perto de Nozelos, no concelho de Macedo de Cavaleiros, havia há muito tempo, à beira do rio, um moinho onde vivia o moleiro. Numa manhã, o moleiro encontrou junto a uma fraga que ainda lá existe um pente de ouro. Apanhou-o e ficou todo contente.
Nisto apareceu-lhe uma donzela muito bonita, que lhe disse:
- Esse pente é meu, mas, se o quiseres, pode ser teu. E posso ainda dar-te mais riquezas. Só tens de me desencantar, pois eu sou uma moura e estou encantada numa cobra.
E explicou-lhe como tinha de fazer. Ir lá num determinado dia, a uma determinada hora e esperar que a cobra viesse e subisse por ele acima, até lhe dar um beijo. E também lhe disse que se tivesse medo, estragaria tudo.
O moleiro aceitou e à hora combinada lá foi. Sentou-se na dita pedra e esperou. De repente, sentiu atrás de si um barulho a roçar nas ervas, o que o fez tremer de susto. A seguir olhou para trás e já nada viu. Apenas uma voz:
- Ah, maroto, que me dobraste o encanto!
E nunca mais encontrou nem a moura, nem a cobra.»*

Creio que se pode dizer que este moleiro foi um bocadinho mais assustadiço do que é habitual. Normalmente, nestas lendas, o homem que vai desencantar a moura aguenta um pouco mais, fica hirto como uma vara enquanto a serpente vem e sobe por ele acima, aguenta enquanto pode, mas quase sempre acaba por fugir antes da serpente lhe poder um beijo.

Em termos simbólicos podemos ver a VARA como o princípio masculino, rígido, enquanto a SERPENTE é o princípio feminino, maleável. Tom Chetwynd diz-nos que «a serpente e a vara opõem-se em todos os sentidos - vivo/morto, enrolado/direito, etc., e em conjunto simbolizam a UNIÃO de todos os OPOSTOS que, em primeira instância, é realizada num nível muito primitivo.»**





















Então, não vos apetece reescrever esta história? Não gostavam mais de uma história em que o homem encontrasse a moura - uma moura encantada, a precisar de ser salva - e a salvasse? Esse homem haveria de ter um carácter mais heróico que o nosso moleiro, teria coragem para deixar a serpente subir suavemente por ele acima, envolvendo-o numa espiral de forte e densa energia telúrica, que lhe despertaria todos os sentidos. E no final o beijo.

Que querem? Eu gosto de histórias com finais felizes. ;)

Só um último pormenor: a voz da serpente, gritando que lhe dobraram o encantamento, é ainda a voz doce, quase infantil, da moura. A voz não muda, só o aspecto visual da moura se altera. Confesso que gosto que seja assim, que as velhas lendas vão de encontro à minha crença de que a voz é o elemento mais verdadeiro. É pena que não seja mais valorizado. Infelizmente, vivemos num mundo dominado pelo sentido da visão. Mas, se a visão se sobrepõe aos outros sentidos, também a razão se sobrepõe ao mundo sensorial. E o nosso mundo, infelizmente, é um mundo onde nós já não somos capazes de encarnar os velhos mitos, que há muito perderam o seu cariz sagrado.

* Alexandre Parafita, A Mitologia dos Mouros, Gailivro, 2006, pp. 253, 253
** Tom Chetwynd, Dicionário dos Símbolos, A Linguagem do Inconsciente, Vol 2, Planeta Editora, 1982, pp. 330

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