Do alto do Penedo Durão, contemplando o poema geológico como lhe chamou Miguel Torga, sentimo-nos contemporâneos do instante da criação, a magia antiga à solta naqueles penedos entranha-se em nós e dá-nos por um instante a eternidade. Trás-os-Montes é um reino maravilhoso que alimenta a alma. Entramos neste mundo mágico e a realidade transforma-se, voltamos ao acto primeiro, ao mundo mítico dos heróis e dos deuses in illo tempore. O tempo lá fora linear torna-se aqui cíclico.
Celebro, entre o Natal e o Ano Novo, as magníficas festas saturninas e solstíciais, que aqui ganham o cariz iniciático das festas dos rapazes. E que nos falam do período de transição, quando o tempo novo, o novo ciclo, é ainda caótico. Mas também nos ensinam a reverenciar este caos primordial, sobretudo pela qualidade e intensidade criativa desta energia primitiva. Entendemos assim por que tudo é permitido aos mascarados que exteriorizam a dança da perpétua renovação. Depois, com as urzes e as giestas cresço devagarinho, saboreando a geada e o luar de Janeiro. Evoco a lua do leite com cordeirinhos recém-nascidos e com eles corro pelos prados de ervinhas novas, bebo nos ribeiros de água cristalina, que ri e corre pelas terras das mouras encantadas, em busca do Douro e do Tâmega, do Tua e do Sabor, e de tantos outros rios de águas sagradas, nas margens dos quais os nossos antepassados edificaram cidadelas como a de Benquerença. E com este sentimento de querer bem e com a generosidade quase arquetípica entro na alma do lugar, na alma do povo. Visito terras antigas: Foz Côa, Moncorvo e Freixo de Espada à Cinta, com as suas encostas cobertas pelas amêndoeiras em flor, numa paisagem indescritivelmente bela. E eis-me já no Equinócio da Primavera, quando o ar se enche de aromas suaves, frescos e florais. E da intensidade do cheiro do folar acabado de cozer que, pela Páscoa, se torna tradição em velhos fornos onde o carvalho e o zimbro, a oliveira e a videira ardem, para que da energia da terra se liberte o poder do fogo, numa alquimia que dá ao pão um sabor ancestral. O tempo continua, na sua passagem vagarosa, recordando-me na véspera de Maio as fogueiras de outrora. Mas, se estas fogueiras se perderam, o mesmo não aconteceu com a tradição das Maias. É reconfortante ver as flores amarelas das giestas penduradas na porta, maravilho-me com as pessoas simples e sábias que nos dizem que também elas participam na cíclica regeneração do cosmos. Delicio-me nos belos recantos do parque de Montesinho, o maior de Portugal, e sinto que de verdade pertenço ali, àquele mundo intemporal e mágico. Vagueio por castros e castelos, sento-me na Domus de Bragança e facilmente visualizo a reunião dos homens bons. Caminho na ponte de Trajano em Chaves e sou de imediato contemporânea dos soldados romanos que também ali atravessam o rio de águas escuras. E com os romanos peregrino ao santuário único de Panóias, em Vila Real. Com o tempo como aliado, permitindo-me viagens por diferentes eras, entro nos jardins do palácio de Mateus e delicio-me com a obra-prima de Nicolau Nasoni. Brinco novamente com o tempo e sento-me nas ruínas de Penas Róias, em Mogadouro. Ah!, que posso eu dizer aos fascinantes Templários? Senhores do Templo, caminhais aqui por velhos caminhos, que outrora foram de Endovélico. E com isso parto para outra paragens, contemplo a Porca de Murça ou o Berrão de Torre D. Chama, entre tantos outros símbolos que se encontram na demanda de Endovélico. Urge reencontar a mitologia lusitana, Atégina espera-nos. Mas, na verdade, a Deusa não foi esquecida, encontramo-la em capelinhas no topo das serranias, relembrando-nos que estamos numa cordilheira sagrada. A serra do Marão é conhecida como montana sagrada desde a antiguidade. Aqui, a terra está sulcada de linhas ley, as forças telúricas marcam a paisagem e as gentes, alterando a percepção e sobre-estimulando os sentidos. Mas não tenho também os sentidos em festas quando, das arribas do douro olho os vales profundos? Miranda, cidade baluarte, expoente máximo da gastronomia transmontana. Bem, a roda do ano chama-me de volta, relembra-me que estou no Solstício de Verão. E, continuando a minha viagem, passo então este dia que antecede a noite mais curta do ano na praia fluvial do Azibo, em Macedo de Cavaleiros, mais logo contemplarei o pôr do sol na serra de Bornes, e depois rumarei à aldeia do Romeu e ao Maria Rita, restaurante que me traz de imediato à memória o meu pai. De novo ganham vida as tuas histórias encantadas nas tardes de estio e nas noites de inverno. Meu senhor transmontano, quem mais se lembraria de me contar a Canção de Rolando? É agora noite, estou nos belos jardins de Mirandela, junto ao rio Tua. E, tal como me ensinaste, recrio o mundo. Ainda me sinto maravilhada com a tua capacidade de transmutar um instantezinho de trazer por casa num momento inesquecível. Com a tua alma de poeta deste ao meu mundo cores maravilhosas. São os teus ensinamentos que me levam a sentir-me feliz neste dia de solstício, marcado pela dor da partida da minha amada Aurora que, contudo, regressa para mim em cada alvorecer. Os dias passam e a véspera de Agosto traz a festa do pão. Partilho o pão em Montalegre, terra que sabiamente me devolve a um tempo fora do tempo e a um espaço fora do espaço. Regresso ao meu Cabeço de Mouros, olho a Torca do outro lado do rio, terra de lendas enigmáticas, de encantos e de mistérios. É o meu mundo. Apanho salva e anis, com um cheiro forte que penetra na pele. E a intensidade do aroma leva-me para outras paragens. Na verdade, não há palavras para descrever o cheiro do mosto no Alto Douro Vinhateiro. Olho o rio, enquanto saboreio o vinho mais conhecido de Portugal que, na verdade, não é do Porto mas de Trás-os-Montes e Alto Douro. É Equinócio de Outono na bela cidade da Régua. Os dias sucedem-se na sua fase decrescente da roda do ano, o mundo tem agora cores em maravilhosos tons de terra, cores de outubro, cheira a terra lavrada e ao fumo das primeiras fogueiras. É chegada a festa das maçãs. E o ciclo termina.