Friday, December 17, 2010

Modos de religiosidade: doutrinal versus imagístico

No último Congresso de Cultura Celta, em Ponte da Barca, uma das conferencistas, a Doutora Adriene Baron Tacla, na sua conferência sobre Modos de Religiosidade dos Celtas Antigos, falou sobre dois modos divergentes de religiosidade: o modo doutrinal e o modo imagístico, segundo a classificação de Harvey Whitehouse (2000). E concluiu que os antigos celtas praticavam sobretudo o modo imagístico.

Vejamos, então, ainda que através de outra fonte, desta vez um documento da autoria de Gisele Fonseca Chagas, como se definem o modo doutrinal e o modo imagístico:

"A abordagem de Whitehouse pontua a relevância da memória para as teorias sociais, argumentando que, para o entendimento das formas pelas quais as pessoas se sentem compartilhando uma identidade comum, é preciso que se leve em consideração os mecanismos de ativação da memória humana que são utilizados (Whitehouse 2000:4-12).

O ponto de partida para o seu modelo dos dois modos de religiosidade divergentes (doutrinal e imagístico) tem por base a dicotomia entre a memória semântica (representações mentais de uma natureza geral, criadas pela repetição dos aspectos rituais) e a memória episódica (representações mentais de eventos experimentados pessoalmente, conceitualizados como episódios únicos na vida de uma pessoa) que, acionadas de diferentes maneiras, geram, respectivamente, o modo doutrinal e o modo imagístico.

No modo doutrinal proposto pelo autor em tela, as ideias religiosas são codificadas discursivamente em um corpus de doutrinas que aspiram coerência interna e que são as bases para as atividades rituais como, por exemplo, as orações e os sermões. No entanto, tradições religiosas doutrinais, para serem efetivas e duradouras, precisam criar meios para controlar e estabilizar o conteúdo das revelações religiosas que estão codificadas nos textos sagrados. Para o autor, a eficácia do modo doutrinal na disseminação do discurso religioso está em sua forma rotinizada de transmissão do conhecimento relativo à religião (Whitehouse 2000:9).

A organização e a transmissão das ideias que fundamentam as religiões que operam no modo doutrinal só foram possíveis com o surgimento da escrita. Jack Goody (1988) ressaltou que a introdução da escrita ocasionou transformações nos modos de transmissão do conhecimento, alterando também o seu conteúdo. A escrita tornou o conhecimento universalizável, pois permitiu que ele, uma vez codificado discursivamente em textos, se tornasse mais abstrato, descontextualizado e impessoal, sujeito a críticas, comentários e reordenamentos, estimulando, então, a elaboração da ortodoxia e suas regras de procedimento (Goody 1987:47, 54-55, 88, 98-101). Nessa linha, seguindo as contribuições de Roger Chartier (1998), sublinho também a importância das práticas de leitura e da recepção dos textos religiosos que compõem a tradição, não só no que diz respeito à divulgação de seu teor, mas também tendo em vista os diferentes efeitos que esse procedimento tem nas identidades religiosas dos agentes sociais.

O conhecimento religioso codificado discursivamente em textos, ao descontextualizar os conceitos religiosos e despersonalizar sua revelação, permitiu que essa fosse difundida, formando amplas comunidades anônimas (Whitehouse 2000:1). Desse modo, foi no âmbito das religiões mundiais organizadas a partir do emprego de técnicas da escrita que surgiram os profetas como anunciadores de uma nova ordem moral (ou uma reordenação da moral já existente), codificada em textos doutrinais e práticas rituais elaboradas para serem divulgadas, daí a existência de atividades missionárias que objetivam a conversão (Goody 1987:2021) - entendida neste artigo como a aceitação intelectual e emocional de um conjunto de crenças e práticas percebidas como corretas.

Por outro lado, segundo Harvey Whitehouse, o modo imagístico pode ser entendido como uma forma de codificação religiosa centrada em ritos traumáticos, esporádicos e sigilosos, que despertam sentimentos muito fortes e levam os participantes a se unirem através de laços de intensa solidariedade. O modo imagístico de codificação religiosa é restrito a pequenos grupos, não podendo alcançar comunidades mais amplas, uma vez que é uma codificação não verbal, que dispensa mediações, em que cada indivíduo só vivencia uma vez a experiência com caráter revelatório, não tendo como expressá-la, monitorá-la ou controlar sua transmissão."
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