Thursday, September 27, 2018

O caminho do bem

Eu continuo à procura da minha tribo, daquelas pessoas que caminharão comigo na paisagem dos nossos antepassados. Não tenho dúvidas que, um destes dias, elas irão aparecer na minha vida. :)

Bem, a verdadeira amizade é algo extraordinário, algo que desenvolve a nossa compaixão e que, sem dúvida, nos torna melhores pessoas.

Platão, nos seu Diálogos, diz o seguinte: «diz-se por vezes que andar em busca da nossa outra metade é que é amar, mas eu afirmo, meu caro, que amar não é andar em busca da nossa outra metade ou, sequer, do todo, quando essa metade e esse todo não forem bons» (Diotima para Sócrates).

Na verdade, a paixão é sempre motivada pelo belo. Pelo belo e não pelo bom, ou pelo bem. A motivação da paixão é simplesmente a imortalidade. Ou, dito de um modo mais terra a terra, a pulsão da necessidade de procriação. Não somente de sexo, mas de procriação.

A amizade profunda e verdadeira, por sua vez, sendo ainda amor, é um amor diferente do amor paixão. Um amor que só pode estar submetido ao princípio supremo: o bem. A amizade é, então, o caminho da bondade, da partilha e da alegria pela felicidade do outro.

Termino dizendo que me podes escrever, sabes? Email: triskelzinho@gmail.com

Eu tenho um casamento sólido e feliz, mas quase não tenho amigos. Tenho poucos amigos no mundo real, quero eu dizer. E são sobretudo esses que eu procuro: pessoas que vivam relativamente perto de mim, ou em Trás-os-Montes, onde eu vou muitas vezes.

Bem, tenho consciência que é tudo muito superficial, nestes tempos modernos, incluindo a amizade. Mas, para mim, uma amizade superficial não é uma verdadeira amizade. Então, quem sabe se não nos espera uma grande e bela amizade? :)

De resto, eu concordo com a ideia de que estranhos se podem tornar os melhores amigos, com tanta facilidade como os melhores amigos se podem tornar estranhos.




Friday, September 21, 2018

A propósito de Nabia

Transcrevo um pequeno comentário que fiz, a propósito de Nabia, referida como deusa dos rios, dos montes e dos castros.

Rodriguez Colmenero (in Deuses da Planície: Nabia e Assimilados), bem como J.  Pokorny, M. L. Albertos, entre outros, insistem que o teónimo Nabia, tal como o homófono topónimo Nava, não tem conotações hídricas, derivando originalmente do vocábulo indo-europeu *naus, que se aplicaria a formas de relevo não montanhosas. Tratando-se de planuras, ou terras baixas, estenderiam a sua denominação à dos cursos fluviais que atravessavam o seu território. 

Parece-me um pouco confuso que também estivesse ligada aos montes. E quanto aos castros, ainda tenho mais dúvidas. Segundo vários historiadores, sobretudo J. M. Blázquez (in Divindades Indigenas e Interpretatio Romana), o mais comum nos castros do noroeste peninsular era os deuses não só carecerem de nomes, como nada ser definido quanto à sua aparência, qualidades, género e número. Também F. Marco (in Interpretatio Romana y Asimilación Indígena, bem como in Religio Deorum) refere que aquilo a que eram atribuídos nomes era aos lugares que eram consagrados à divindade, como bosques, arvoredos, fontes, etc. F. Villar (in Un Elemento de la Religiosidad Indoeuropea) também expressa uma opinião similar.

«Os deuses, tal como os cães, respondem apenas quando são chamados pelos seus nomes.» A frase é de Cícero no tratado De Natura Deorum. Nas religiões gregas e romanas, sem dúvida que o conhecimento do nome era um pré-requisito essencial em qualquer forma de comunicação com qualquer entidade divina. F. Marco Simon (in Diis Deabvsqve A Indefinição Primordial do Divino) refere que tal não acontecia na região norte da Península Ibérica.

Ainda in A Indefinição Primordial do Divino, F. Marco Simon cita uma passagem de Jâmblico, dizendo que em cada povo há características linguísticas impossíveis de se expressarem na língua de outro povo e que, mesmo quando tal fosse possível, um nome traduzido (ou romanizado) carecia de poder.

Mais tarde, continuei com outro comentário, que também transcrevo.

Eu estou consciente da associação de Nabia com o culto da água. Sei que Leite de Vasconcelos propôs até a interpretação do nome na Fonte do Ídolo, como «a divindade da fonte pela qual se jura». Mas podia estar enganado. De qualquer forma, a Fonte do Ídolo é um templo na parte baixa da cidade, actualmente é preciso descer alguns metros até ao recinto do antigo templo. Este templo foi erigido na época romana, pela família de Celicus Fronto, sendo que este era um estrangeiro, alguém que provinha de fora da Galécia e cujo conhecimento das divindades locais era limitado. Associado ao templo, havia um recinto de lazer, um tanque alimentado por uma pequena nascente. Se não houvesse nenhuma nascente, a construção do espaço que lazer (que existiu!) seria impossível. De modo que a nascente pode estar lá, por diversas razões. Não deixa de ser estranho que, num espaço onde há imensas fontes sagradas, esta não o seja na tradição popular.

Também não conheço nenhum ritual relacionado com o culto da água, nos rios Neiva ou Nabão, mas esses rituais existem, em relação a outros rios. Leite de Vasconcelos refere alguns rios do noroeste Peninsular que “requeriam” sacrifícios, refere outros aos quais a tradição popular associava seres míticos ligados à água e refere ainda outros rios, em que se praticavam ainda velhos cultos pagãos. Por acaso, falhou o ritual mais importante deles todos, nunca o encontrou e não o referiu. Muitos o referiram, mas apenas aqui e ali, dispersamente. E eu estou profundamente grata ao meu marido, que dedicou a sua tese de mestrado precisamente a um ritual muito antigo do culto da água, com várias referências, mas muito dispersas e que, apesar de tudo, chegou aos nossos dias, não só em termos de referências como também da continuidade do culto. Em diversos locais, em vários rios, tanto no Minho como em Trás-os-Montes, o mesmo ritual, de um intenso e emotivo culto da água, não só chegou aos nossos dias, como ainda se pratica. Contudo, este é o tempo do fim de um ritual pagão e profundo, ao qual é impossível ficarmos indiferentes.

Tudo isto para dizer que eu sei muito bem que o culto da água é o elemento mais marcante e mais vincado do paganismo do norte de Portugal. Mas, na minha modesta opinião, talvez seja preciso deixar de o associar apenas com Nabia, se é que tem alguma associação com esta divindade, e encontrá-lo de verdade.

p. s. Já agora, se alguém quiser ler a tese que referi, é a tese de Mestrado em Património e Turismo Cultural, de Alexandre da Silva Marques, publicada no site da Universidade do Minho.
A tese começou com a Ponte da Misarela e acabou mantendo o nome, mas refere várias pontes, de diferentes rios, onde se praticava o belíssimo ritual do Baptismo no Ventre. Link:
Lugares de memória : a Ponte da Misarela

Wednesday, September 19, 2018

O Lugar do Início


O livro O Lugar do Início, de Ursula K. Le Guin (uma escritora de quem sempre gostei muito), começa com uma citação de Jorge Luis Borges: Que rio é este pelo qual corre o Ganges?... 

Acerca disso deixei este pequeno comentário a um amigo: 

Não há como fugir a isso, pois não? O lugar do início da nossa tribo encontra-nos sempre. Por mais elaborados que sejam os nomes ou as litanias, acaba sempre tudo por regressar à verdade simples e imediata da paisagem. Para mim, quero eu dizer. :)

A paisagem que moldou a tribo, de alguma maneira, é imutável. Os montes tornam-se vales, os rios correm em diferentes leitos, as velhas árvores desaparecem e outras, de diferentes espécies, passam a ser dominantes. Tudo muda e, ainda assim, a paisagem que foi corpo da tribo, ainda é. Não há nada naquela paisagem que possa ser diferente, mesmo que os nossos olhos nos digam o contrário. 

Que sentido é verdadeiro? O que é real? Se fecharmos os olhos, o cheiro e o som tornam-se outros. Se continuarmos de olhos fechados, a cada passo que damos entramos mais e mais no corpo da tribo. E é assim até começarmos a sentir aquela velha sensação, também ela invariável. Nesse momento, podemos abrir os olhos: a floresta encontrou-nos.


Outro pensamento acerca da paisagem

Eu sou incapaz de basear a minha relação com os meus deuses em documentos. Sofro da paixão historiográfica, que invadiu o mundo moderno, face a muita coisa, mas não em relação aos deuses.

A minha relação com os meus deuses só faz sentido se se basear no meu modo de sentir e no meu modo de pensar. O documento não transmite o meu modo de pensar e de sentir, é limitativo. E, no enquadramento das minhas divindades pagãs, está sempre imbuído do modo de pensar, de sentir e de ver o mundo de uma cultura distinta daquela, de tradição oral, de onde partiu esse documento. Uma cultura que já pouco valoriza a alma da tribo, os mitos, mas que desvaloriza ainda mais o corpo da tribo: a paisagem. Para mim, a paisagem é fundamental.

No mês passado, eu estava, por mero acaso, no lugar onde antigamente havia um templo pagão, na aldeia onde nasci, quando, novamente mais ou menos por acaso, me volto e vejo a lua cheia a nascer. Foi só isso, mas desencadeou algo incrivelmente intenso dentro de mim. Por escassos segundos, liguei-me aos ancestrais da minha tribo, que pisaram aquele chão e que viram um nascer de lua cheia, em circunstâncias similares. E liguei-me aos descendentes da minha tribo que, num qualquer momento futuro, hão-de sentir, naquele lugar, o nascer da lua cheia.

O que eu quero dizer é que, na tradição oral, mesmo numa tradição oral inserida num contexto cristão, o corpo da tribo continua a ser valorizado, mas esse corpo da tribo tem cada vez menos relevo no documento, pela sua própria natureza muito mais selectivo, muito mais censurado.

Se esquecermos o corpo da tribo, esquecemos demasiado.

Para mim, Lugh é por excelência uma divindade ligada à paisagem, ao corpo da tribo, ao lugar. Assim, quando eu senti tão intensamente aquele momento em abril, agradeci também a Lugh por me permitir sentir a memória daquele lugar.

A memória do lugar é, na minha opinião, algo que urge trazer de volta.

Maio de 2017.

Autumn Memories by Frederick Mccubbin, 1899.


Monday, September 17, 2018

Tentando voltar ao caminho

Sinto que devo voltar a escrever acerca do corpo da tribo. Mas eu já não tenho as palavras. Também eu sou, cada vez mais, intrinsecamente turista. E quando somos turistas não encontramos a memória da paisagem, que também não nos diz a cada passo quem nós somos.

De resto, quando eu percorro a paisagem, que é o corpo da minha tribo, eu não tenho conceitos, só experiências. Mas quererei falar delas, em público? Não estarei já farta dos meus patéticos espectáculos de vaudeville?...

Hmm, talvez eu não tenha nada contra o vaudeville e o que me aborreça seja o pressuposto da narrativa explicada. Bem, se não explicada, pelo menos algo com sentido, o que acarreta ainda o cansativo desdobramento entre actor e expectador.

Eu estou a mudar de pele, a entrar cada vez mais no meu novo eu: nocturno, onírico e abstracto. Já nem sequer quero ser compreendida. Por que razão me preocupo ainda com tudo isso?

Talvez por, no fundo, ainda persistir a convicção de que o único espaço onde eu faço falta é no corpo da minha tribo, onde talvez eu ainda seja capaz de abrir novos caminhos. E eu simplesmente não sou capaz de me afastar, quando faço falta.

Assim, em qualquer momento, haverá um verdadeiro regresso e eu estarei de novo no caminho, voltarei a peregrinar.

Nas minhas peregrinações, eu nunca procurei a reconstrução, que nunca deixaria de ser algo novo, por maior que fosse a sua beleza. Eu sempre quis encontrar o que ainda era original, mesmo que estivesse esquecido e cheio de entulho.


A paisagem (o corpo da minha tribo)

Publiquei este post em setembro de 2010, no meu blog Clareirazinha. Hoje trago-o de volta, porque sim. ;)

Para mim a Galécia é, antes de mais, a terra: os carvalhos e as pedras que, mais do que me dizerem quem são, dizem-me quem eu sou. E quem eu sou é um eco que eu não encontro noutros lugares, por maior que seja a sua beleza ou antiguidade, o que é quase impossível de explicar a um cidadão do mundo, como o meu marido e como a maior parte dos meus amigos. Mas, mesmo não sendo entendido pelos outros, contínua a ser esse o meu sentir. E a Galécia é a terra que me diz quem eu sou.

Há lugares, por esse vasto e maravilhoso mundo, que me deslumbraram e que ficaram para sempre guardados nas minhas memórias. Há outros que me transformaram, que me deram esse sentir ainda mais raro: a chegada – o sentimento simples e, ao mesmo tempo, arrebatador de chegar, a sensação de que aquele lugar é uma meta na minha viagem. - Contudo, volto a repetir: a Galécia é a terra que me diz quem eu sou, a cada instante e a cada passo...

A paisagem agreste e montanhosa do nordeste transmontano moldou-me, desde os meus primeiros anos. Na minha infância, o rio chamava-se Tuela. E Montesinho é ainda a terra onde não há memórias das primeiras vezes, ao contrário do Gerês, que comecei visitar apenas na idade adulta, mas pelo qual senti de imediato um amor igualmente intenso. E, de verdade, poucos lugares são, para mim, comparáveis à velha Mata de Albergaria, que em cada encontro me redefine.

A primeira vez que percorri as pedras gastas da velha Citânia de Briteiros, por um estranho acaso no dia do Lughnasadh, é bem mais do que uma memória, é um instante eterno que ainda ecoa dentro de mim, recriando um momento em que me senti estranhamente inteira, como se só nesse instante tivesse encontrado uma parte de mim que eu nem sequer sabia que estava em falta.

E o que é que, nas minhas memórias, se pode comprar à chegada, quase ao pôr-do-sol, a Finisterra? O terminus de uma viagem de vários dias que percorreu toda a Costa da Morte, numa travessia de saudade, profundamente marcada pelo Espírito do Lugar.

Outro anoitecer. O final de um dia no Penedo Durão, ou a primeira vez em que parti do Porto e acompanhei no comboio as curvas do rio, saboreando o Alto Douro vinhateiro. Outras memórias, os mesmo lugares. Instantes que dentro de mim permaneceram eternos: encostas de caminhos íngremes e pedregosos, imensidão de amendoeiras em flor e a maravilha das gravuras rupestres de Foz Côa.

E para sempre a memória da subida à velha ruína de Penas Róias, também ao pôr-do-sol de um longo dia de verão, depois de um dia perfeito nas escarpas do Douro. Poucos lugares detém um significado tão absoluto, para mim. Penas Róias foi durante toda a minha infância um lugar mágico, antigo e distante. Era o cenário de muitas batalhas que alimentavam as minhas noites de inverno. Histórias contadas à lareira que partiam da Canção de Rolando e iam sendo reinventadas, numa miscelânea que, para a criança que eu era, fazia todo o sentido. A minha espada, que tantas vezes imaginei na infância e que só encontrei muito mais tarde. A minha espada maravilhosa com a cabeça de um leão no punho. A minha espada que não faz de mim uma guerreira, mas que eu tenho precisamente porque sou uma guerreira.

Uma longínqua ida a uma romaria que permanece como um dia luminoso e eterno. Um monte sagrado onde nunca mais voltei, uma das muitas montanhas da minha terra. Um santuário que mal recordo, mas guardo com carinho a memória da longa caminhada que começou ainda de noite, ao luar. Um dia intenso, pleno de alegria e de deslumbramento.

A primeira vez que me senti enamorada e o modo como, para sempre, dentro de mim, as estações de comboios e, em especial, a linha do Tua, ficaram associadas a algo que nos transporta para fora de nós mesmos, a uma estranha sensação de agigantamento.

Há muitas outras memórias, que se parecem com um sonho recorrente e que me levam sempre de volta a esta terra. Esta terra que me faz esquecer as minhas viagens por outros lugares. Esta terra que me viu nascer, esta terra onde hei-de morrer. Esta terra que é minha, porque está no meu coração. Galécia... a terra que me diz quem eu sou.