Transcrevo um pequeno comentário que fiz, a propósito de Nabia, referida como deusa dos rios, dos montes e dos castros.
Rodriguez Colmenero (in Deuses da Planície: Nabia e Assimilados), bem como J. Pokorny, M. L. Albertos, entre outros, insistem que o teónimo Nabia, tal como o homófono topónimo Nava, não tem conotações hídricas, derivando originalmente do vocábulo indo-europeu *naus, que se aplicaria a formas de relevo não montanhosas. Tratando-se de planuras, ou terras baixas, estenderiam a sua denominação à dos cursos fluviais que atravessavam o seu território.
Parece-me um pouco confuso que também estivesse ligada aos montes. E quanto aos castros, ainda tenho mais dúvidas. Segundo vários historiadores, sobretudo J. M. Blázquez (in
Divindades Indigenas e Interpretatio Romana), o mais comum nos castros do noroeste peninsular era os deuses não só carecerem de nomes, como nada ser definido quanto à sua aparência, qualidades, género e número. Também F. Marco (in
Interpretatio Romana y Asimilación Indígena, bem como in
Religio Deorum) refere que aquilo a que eram atribuídos nomes era aos lugares que eram consagrados à divindade, como bosques, arvoredos, fontes, etc. F. Villar (in
Un Elemento de la Religiosidad Indoeuropea) também expressa uma opinião similar.
«Os deuses, tal como os cães, respondem apenas quando são chamados pelos seus nomes.» A frase é de Cícero no tratado
De Natura Deorum. Nas religiões gregas e romanas, sem dúvida que o conhecimento do nome era um pré-requisito essencial em qualquer forma de comunicação com qualquer entidade divina. F. Marco Simon (in
Diis Deabvsqve A Indefinição Primordial do Divino) refere que tal não acontecia na região norte da Península Ibérica.
Ainda in
A Indefinição Primordial do Divino, F. Marco Simon cita uma passagem de Jâmblico, dizendo que em cada povo há características linguísticas impossíveis de se expressarem na língua de outro povo e que, mesmo quando tal fosse possível, um nome traduzido (ou romanizado) carecia de poder.
Mais tarde, continuei com outro comentário, que também transcrevo.
Eu estou consciente da associação de Nabia com o culto da água. Sei que Leite de Vasconcelos propôs até a interpretação do nome na Fonte do Ídolo, como «a divindade da fonte pela qual se jura». Mas podia estar enganado. De qualquer forma, a Fonte do Ídolo é um templo na parte baixa da cidade, actualmente é preciso descer alguns metros até ao recinto do antigo templo. Este templo foi erigido na época romana, pela família de Celicus Fronto, sendo que este era um estrangeiro, alguém que provinha de fora da Galécia e cujo conhecimento das divindades locais era limitado. Associado ao templo, havia um recinto de lazer, um tanque alimentado por uma pequena nascente. Se não houvesse nenhuma nascente, a construção do espaço que lazer (que existiu!) seria impossível. De modo que a nascente pode estar lá, por diversas razões. Não deixa de ser estranho que, num espaço onde há imensas fontes sagradas, esta não o seja na tradição popular.
Também não conheço nenhum ritual relacionado com o culto da água, nos rios Neiva ou Nabão, mas esses rituais existem, em relação a outros rios. Leite de Vasconcelos refere alguns rios do noroeste Peninsular que “requeriam” sacrifícios, refere outros aos quais a tradição popular associava seres míticos ligados à água e refere ainda outros rios, em que se praticavam ainda velhos cultos pagãos. Por acaso, falhou o ritual mais importante deles todos, nunca o encontrou e não o referiu. Muitos o referiram, mas apenas aqui e ali, dispersamente. E eu estou profundamente grata ao meu marido, que dedicou a sua tese de mestrado precisamente a um ritual muito antigo do culto da água, com várias referências, mas muito dispersas e que, apesar de tudo, chegou aos nossos dias, não só em termos de referências como também da continuidade do culto. Em diversos locais, em vários rios, tanto no Minho como em Trás-os-Montes, o mesmo ritual, de um intenso e emotivo culto da água, não só chegou aos nossos dias, como ainda se pratica. Contudo, este é o tempo do fim de um ritual pagão e profundo, ao qual é impossível ficarmos indiferentes.
Tudo isto para dizer que eu sei muito bem que o culto da água é o elemento mais marcante e mais vincado do paganismo do norte de Portugal. Mas, na minha modesta opinião, talvez seja preciso deixar de o associar apenas com Nabia, se é que tem alguma associação com esta divindade, e encontrá-lo de verdade.
p. s. Já agora, se alguém quiser ler a tese que referi, é a tese de Mestrado em Património e Turismo Cultural, de Alexandre da Silva Marques, publicada no site da Universidade do Minho.
A tese começou com a Ponte da Misarela e acabou mantendo o nome, mas refere várias pontes, de diferentes rios, onde se praticava o belíssimo ritual do Baptismo no Ventre. Link:
Lugares de memória : a Ponte da Misarela