«Já Unamuno, observador do espírito português, proclamou o paganismo e o panteísmo da nossa religiosidade, contraposto ao católico espírito castelhano. Essa afirmação documenta-se claramente no nosso cancioneiro.
Até o culto do Sol, comum a todos os povos arianos, cujos vestígios alguns mitólogos vão buscar às festas de S. João e do Natal, que coincidem com o Solstício do Verão e o Solsticio do Inverno, existe bem evidente no cancioneiro, quer isolado, quer fundido com os símbolos cristãos. Haja em vista esta curiosíssima cantiga, que nós deparamos na Revista de Guimarães:
ORAÇÃO AO SOL
Vou-me despedir de vós,
Adeus, oh! Sol que te vais,
Deixais-me ficar sósinha
No meio dos pinheirais.
Oh! Sol, torna amanhã,
Eu quero-te ver nascer,
Só a vós é que eu adoro,
Só por vós quero morrer.
A seguir ha esta nota: «Esta oração só deve ser dita ao pôr do Sol; a qualquer outra hora é pecado».
Perante este precioso documento não podem restar dúvidas de que existam entre nós restos daquele culto. Demais, em muitas cantigas aparece a expressão Sol divino, como teremos ainda ocasião de ver. Outro curioso documento mas este da fusão do mito solar com o cristianismo ou do reaparecimento daquele sob as representaçõis cristãs, posteriormente recebidas, é o Terço da Aurora, coligido nas Tradiçõis de Serpa, na Revista Lusitana, por M. Dias Nunes e cuja notícia queremos dar tal e qual ali aparece, por ser muito significativa:
O TERÇO DA AURORA
Esta cerimónia religiosa realiza-se por ocasião das festas em louvor da Senhora dos Remédios, Conceição, Prazeres, e também pela Páscoa e Quinta-feira de Ascensão. Na madrugada do dia em que a festividade se celebra, os devotos que primeiro chegam á respectiva igreja, saem em grupo, e vão de porta em porta a procurar os seus confrades retardatários, cantando:
A ADORAÇÃO
Os devotos que hão de vir a rezar o sacratíssimo rosário de Maria Aurora—podem vir que é tempo—para que esta soberana não diga—que nos entregamos—ao esquecimento.— Podem vir que é tempo.
Depois de todos reunidos—todos os irmãos particularmente convidados para tomarem parte no terço—percorrem as principaes ruas da vila entoando repetidas vezes em coro e num ritmo extremamente arrastado e monótono o padre-nosso, â ave-maria e a gloriapatri; tendo o cuidado de sempre que se aproximam de qualquer igreja du de qualquer passo fazer um poiso e recitar o
OFERECIMENTO
Soberana, divina Aurora
Mãe do eterno Sole,
Quem como vós pudera,
Soccorrer-nos melhore!
Quando o sol é nado, recolhem á igreja donde saíram, e ahi pronunciam em altas vozes:
(Voz), Gloria patri, é filho, é desprito santo,
(Coro). Secundire de príncipe, é de nunca é semper, é de sedo sécloro. Amei;
É de notar que a cerimónia se realisa de madrugada até que o Sol é nado e a clara substituição ou fusão da Virgem com a divina Aurora e de Cristo com o eterno Sol.
E essa Oração ao Sol nascente, conjuração de bruxa ciumenta, exortando o Sol, numa rajada de ardorosa paixão, a que lhe sirva de intermediário e realise, com o divino poder, os seus desatinados e raivosos desejos!»
Jamie Cortesão, Cancioneiro Popular, Antologia Precedida Dum Escudo Crítico, 1914, pag 35, 36,37.
Winter landscape by Osterlehner Erwin.
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