Para os nossos longínquos antepassados, que agora tão facilmente chamamos de primitivos, os aspectos sérios e cómicos da divindade, do mundo e do próprio homem eram igualmente sagrados. A par da solenidade, existia também o valor ritual do riso e da alegria.
«No primitivo estado romano, durante a cerimónia de triunfo, celebrava-se e escarnecia-se o vencedor em igual proporção; do mesmo modo durante os funerais chorava-se (ou celebrava-se) e ridicularizava-se o defunto.»
É desta cultura ancestral que nos chegam os festejos carnavalescos. Com o carnaval assistimos a uma manifestação pura da vida em si mesma, sem distinção entre actores e espectadores. É um acto de liberdade e de regeneração, que vem da antiguidade longínqua.
Nesse sentido, o carnaval não era uma forma artística de espectáculo teatral, mas uma forma concreta (embora provisória) da própria vida, que não era simplesmente representada no palco, antes pelo contrário, vivida enquanto durava o carnaval. Isso pode expressar-se da seguinte maneira: durante o carnaval é a própria vida que representa e interpreta (sem cenário, sem palco, sem actores, sem espectadores, ou seja, sem os atributos específicos de todo o espectáculo teatral) uma outra forma livre da sua representação, isto é, o seu próprio renascimento e renovação sobre melhores princípios. Aqui a forma efectiva da vida é ao mesmo tempo a sua forma ideal ressuscitada.
Em resumo, durante o carnaval é a própria vida que representa, e por um certo tempo o jogo se transforma em vida real. Essa é a natureza específica do carnaval, o seu modo particular de existência.
O carnaval é a segunda vida do povo, baseada no princípio do riso. É a sua vida festiva. A festa é a propriedade fundamental de todas as formas de ritos e espectáculos cómicos da Idade Média.
Todas essas formas apresentam um elo exterior com as festas religiosas. Mesmo o carnaval, que não coincidia com nenhum facto de história sagrada, com nenhuma festa de santo, realizava-se nos últimos dias que precediam a grande quaresma (daí os nomes franceses de Mardi gras ou Carême-Prenant e, nos países germânicos, de Fast-nacht). O elo genético que une essas formas aos festejos pagãos agrícolas da antiguidade, e que incluem no seu ritual o elemento cómico, é mais essencial ainda.
As festividades (qualquer que seja o seu tipo) são uma forma primordial marcante, da civilização humana. Não é preciso considerá-las nem explicá-las como um produto das condições e finalidades práticas do trabalho colectivo nem, interpretação mais vulgar ainda, da necessidade biológica (fisiológica) de descanso periódico. As festividades tiveram sempre um conteúdo essencial, um sentido profundo, exprimiram sempre uma concepção do mundo. Os "exercícios" de regulamentação e aperfeiçoamento do processo do trabalho colectivo, o "jogo no trabalho", o descanso ou a trégua no trabalho nunca chegaram a ser verdadeiras festas. Para que o sejam, é preciso um elemento a mais, vindo de uma outra esfera da vida corrente, a do espírito e das ideias. A sua sanção deve emanar não do mundo dos meios e condições indispensáveis, mas daquele dos fins superiores da existência humana, isto é, do mundo dos ideias. Sem isso, não pode existir nenhum clima de festa.
As festividades têm sempre uma relação marcada com o tempo. Na sua base, encontra-se constantemente uma concepção determinada e concreta do tempo natural (cósmico), biológico e histórico. Além disso, as festividades, em todas as suas fases históricas, ligaram-se a períodos de crise, de transtorno, na vida da natureza, da sociedade e do homem. A morte e a ressurreição, a alternância e a renovação constituíram sempre os aspectos marcantes da festa. E são precisamente esses momentos – nas formas concretas das diferentes festas – que criaram o clima típico da festa.
Sob o regime feudal existente na Idade Média, esse carácter de festa, isto é, a relação da festa com os fins superiores da existência, a ressurreição e a renovação, só podia alcançar a sua plenitude e a sua pureza, sem distorções, no carnaval e em outras festas de que se revestia a segunda vida do povo, o qual penetrava temporariamente no reino utópico da universalidade, liberdade, igualdade e abundância.
Por outro lado, as festas oficiais – tanto as da igreja como as do Estado feudal – não arrancavam o povo à ordem existente, não criavam essa segunda vida. Pelo contrário, apenas contribuíam para consagrar o regime em vigor, para fortificá-lo. O elo com o tempo tornava-se puramente formal, as sucessões e crises ficavam totalmente relegadas ao passado. Na prática, a festa oficial olhava apenas para trás, para o passado de que se servia para consagrar a ordem social presente. A festa oficial, às vezes mesmo contra as suas intenções, tendia a consagrar a estabilidade, a imutabilidade e a perenidade das regras que regiam o mundo: hierarquias, valores, normas e tabus religiosos, políticos e morais correntes. A festa era o triunfo da verdade pré-fabricada, vitoriosa, dominante, que assumia a aparência de uma verdade eterna, imutável e peremptória. Por isso o tom da festa oficial só podia ser o da seriedade sem falha, e o princípio cómico era-lhe estranho. Assim, a festa oficial traía a verdadeira natureza da festa humana e desfigurava-a. No entanto, como o carácter autêntico desta era indestrutível, tinham que tolerá-lo e às vezes até mesmo legalizá-lo parcialmente nas formas exteriores e oficiais da festa e conceder-lhe um lugar na praça pública.
Ao contrário da festa oficial, o carnaval era o triunfo de uma espécie de libertação temporária da verdade dominante e do regime vigente, de abolição provisória de todas as relações hierárquicas, privilégios, regras e tabus. Era a autêntica festa do tempo, a do futuro, das alternâncias e das renovações. Opunha-se a toda a perpetuação, a todo o aperfeiçoamento e a toda a regulamentação, apontava para um futuro ainda incompleto. »
«Ao longo de séculos de evolução, o carnaval da Idade Média, preparado pelos ritos cómicos anteriores, velhos de milhares de anos (incluindo, na Antiguidade, as saturnais), originou uma linguagem própria de grande riqueza, capaz de expressar as formas e símbolos do carnaval e de transmitir a percepção carnavalesca do mundo, peculiar, porém complexa, do povo. Essa visão, oposta a toda a ideia de acabamento e de perfeição, a toda essa pretensão de imutabilidade e de eternidade, necessitava de se manifestar através de formas de expressão dinâmicas e mutáveis (proteicas), flutuantes e activas. Por isso todas as formas e todos os símbolos da linguagem carnavalesca estão impregnados do lirismo e da alternância e da renovação, da consciência da alegre relatividade das verdades e autoridades no poder. Caracteriza-se, principalmente, pela lógica original das coisas “ao avesso”, “ao contrário”, das permutações constantes do alto e do baixo (“a roda”), da face e do traseiro, e pelas diversas formas de paródias, travestis, degradações, profanações, coroamentos e destronamentos bufões. A segunda vida, o segundo mundo da cultura popular constrói-se de certa forma com a paródia da vida ordinária, como um “mundo ao revés”. É preciso assinalar, contudo, que a paródia carnavalesca está muito distante da paródia moderna puramente negativa e formal; com efeito, mesmo negando, aquela ressuscita e renova ao mesmo tempo. A negação pura e simples é quase sempre alheia à cultura popular.»
Posto isto, resta ainda a questão do nome... porquê "carnaval"?
«Desde a segunda metade do século XIX, numerosos autores alemães defenderam a tese da origem alemã da palavra carnaval, que teria a sua etimologia de karne ou karth, ou “lugar santo” (isto é, a comunidade pagã, os deuses e os seus servidores) e de val (ou wal) ou “morto”, “assassinado”. Carnaval significaria, ortanto, a procissão dos deuses mortos.»
Este é um elemento introduzido pelo Cristianismo. Contudo, não nos podemos esquecer que o elemento carnavalesco já existe nas antigas lendas celtas. Os símbolos carnavalescos são dotados de uma riqueza e de uma originalidade exterior ao Cristianismo, são um legado muitíssimo mais antigo, são um património pagão.
E como poderia o universo cristão compreender a natureza complexa e ambivalente do riso carnavalesco? Que «é, antes de mais, um riso festivo. Não é, portanto, uma reacção individual diante de um ou outro facto “cómico” isolado. O riso carnavalesco é, em primeiro lugar, um património do povo (esse carácter popular, como dissemos, é inerente à própria natureza do carnaval); todos riem, o riso é "geral"; em segundo lugar, é universal, atinge todas as coisas e todas as pessoas (inclusive as que participam no carnaval), o mundo inteiro parece cómico e é percebido e considerado no seu aspecto jocoso, no seu alegre relativismo; por último, esse riso é ambivalente: alegre e cheio de alvoroço, mas ao mesmo tempo burlador e sarcástico, nega e afirma, amortalha e ressuscita simultaneamente.»
Este riso popular e festivo nada tem a ver com o riso satírico e humorista a que estamos habituados, nestes tempos modernos. «O autor satírico que apenas emprega o humor negativo, coloca-se fora do objecto aludido e opõe-se a ele; isso destrói a integridade do aspecto cómico do mundo, e então o risível (negativo) torna-se um fenómeno particular. Ao contrário, o riso popular ambivalente expressa uma opinião sobre um mundo em plena evolução no qual estão incluídos os que riem.» Sim, porque não nos podemos esquecer que «uma qualidade importante do riso na festa popular é que escarnece dos próprios burladores. O povo não se exclui do mundo em evolução. Também ele se sente incompleto; também ele renasce e se renova com a morte.»
«O problema do riso popular deve ser colocado de maneira conveniente. Os estudos que lhe foram consagrados incorrem no erro grosseiro de modernizá-lo grosseiramente, interpretando-o dentro do espírito da literatura cómica moderna, seja como um humor satírico negativo, seja como um riso alegre destinado unicamente a divertir, ligeiro e desprovido de profundidade e força.»
Mas, este riso pagão e popular, é algo mais. «Devemos assinalar especialmente o carácter utópico e o valor de concepção do mundo desse riso festivo, dirigido contra toda a superioridade.» É um riso mítico, que «mantém viva ainda a burla ritual da divindade, tal como existia nos antigos ritos cósmicos». É um riso purificador, que faz desaparecer todos os elementos culturais limitativos, deixando apenas «os elementos humanos, universais e utópicos».
Todos os excertos são do livro A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento, de Mikhail Bakhtin.
Fotos retiradas daqui.
2 comments:
Maria, escolheste um dos meus autores preferidos: Mikhail Bakhtin. Foi através dele que me apaixonei pelo Grotesco e por todas as manifestações grotescas da cultura. Um exemplo disso, é o Carnaval. Não participo, nem nunca participei neste rito, mas interesso-me pela sua simbologia e como é demonstrado em algumas regiões. Isto tudo foi só para te dizer que gostei muito deste post.
Eu também gosto muito deste autor. :)
Post a Comment