Wednesday, February 03, 2010

Velhos rituais

A velha amassava o pão, levantando em círculos a massa, de farinha de centeio. As mãos elevavam a massa. As palmas voltadas para o corpo da velha, subiam e desciam, sempre em círculos, num movimento de dentro para fora. A massa era batida. Mas, se a farinha fosse de trigo, o movimento era outro. O pão era amassado em suaves movimentos circulares, ao longo da masseira, sem nunca levantar nem bater a massa.

A velha dividia a massa, criando pães redondos, que colocava a levedar. Benzendo cada um dele: “S. Mamede te levede, S. Vicente te acrescente, S. João te faça pão”. Sem esse velho gesto, outrora livre e pagão, agora cristianizado, o processo não estava completo.

Enquanto o pão levedava, a velha começava a aquecer o antigo forno comunitário, também de formato circular, feito de pedras de granito escurecidas e gastas. Aquecer o forno era igualmente um acto ritual, onde tudo se fazia como sempre se fez, começando com as giestas e acabando com os feixes de vides, pelo meio outra lenha era queimada, inebriando a velha com o aroma intenso da esteva e reconfortando-a com o suave crepitar da oliveira.

Neste ritual do pão, o círculo estava sempre presente, do princípio ao fim. Mas, agora era outro tempo. E ao acabar de colocar o pão no forno, a velha fazia com a pá uma cruz na entrada do forno, antes de o fechar. Mas nem sempre foi assim. E, na memória, ainda ficou o nome para esse gesto final: “talhar o forno”.

O pão era sagrado. E a velha apanhava-o e beijava-o quando este caía ao chão. O pão que se comia até à última migalha. E quando um daqueles grandes pães acabava, era sempre a velha quem encetava outro, benzendo-o novamente quando cortava a primeira fatia.

O pão estava sempre presente, na mesa de todos os dias e nas festas. O cesto de pão que a velha distribuía às vizinhas, quando em casa nascia mais uma criança. Ou o carolo que a velha trazia do mortório e comia mais tarde, sozinha e em silêncio, para dar paz ao defunto. O pão participava do nascimento e da morte.

2 comments:

O Galaico said...

Lindas palavras Maria.

O pão simboliza mesmo que inconsciente a ligação do ser humano ao mundo natural e espiritual.

Ao Natural porque todo o seu processo se baseia no seu cultivo.

Ao espiritual por esse ser de uma tamanha importância para a sobrevivência dos nossos antepassados que todo o seu processo foi ritualizado.

Esta união que o pão representa pode ser observado por exemplo na nossa gramática.

A raiz PAN, deu em pão.

Hoje, utiliza-se o prefixo PAN como prefixo de ligação.

Por exemplo, Canal Pan-Américo que liga dois continentes ou a companhia de aviação PANAM que liga a America ao resto do mundo!

A Respigadeira said...

A minha avó cozia pão, mas o seu forno era mesmo na sua grande cozinha. Também me lembro que ela ditava umas palavras que, infelizmente, perderam-se na memória. Foi engraçado visualizar, ao ler as tuas palavras, a minha avó beijar o pão quando este, devido a um descuido dos netos, caia no chão.

Obrigada pelas lembranças.