Tuesday, December 21, 2021

Feliz Solstício!

No século II a. C., já os astrónomos gregos tinham mapas com o círculo máximo do Equador e com os pararelos Trópico de Câncer e Trópico de Capricórnio. Trata-se da projeção na superfície da Terra de uma linha imaginária da esfera celeste, definida pelo movimento aparente do sol. Assim, estes nomes não foram escolhidos ao acaso, pelo contrário, os trópicos receberam o nome da constelação em que o Sol estava nos dias de solstício. Com o tempo as constelações mudaram, devido à precessão dos equinócios. Mas, antigamente, quando a trajetória aparente do Sol, observada a partir da Terra, atingia a sua declinação máxima a norte e se dava o solstício de verão no hemisfério norte, a constelação que estava no horizonte era a constelação de Câncer/Caranguejo. Da mesma maneira, quando a trajetória aparente do Sol, observada a partir da Terra, atingia a sua declinação máxima a sul e se dava o solstício de inverno no hemisfério norte, a constelação que estava no horizonte era a constelação de Capricórnio.

Nas antigas civilizações, o homem via os solstícios como aberturas opostas do céu. No panteão romano, esse conceito foi personificado pelo deus Janus. O seu nome deriva de janua, palavra latina que significa porta. Janus era representado com duas faces simetricamente opostas, pois era aquele que olhava para o passado e em simultâneo para o futuro. Na concepção do homem primitivo, que representava o tempo de um modo cíclico, Janus presidia ao Solstício de Inverno e ao seu oposto na roda do ano, o Solstício de Verão.

Esse conceito foi-nos transmitido ainda no Cristinismo, embora apenas simbolicamente. Senão, vejamos: na tradição hebraica, as duas estrelas principais da constelação de Caranguejo/Câncer são chamadas de Haiot Ha-Kadosh, ou seja, animais de santidade, designados pelas duas primeiras letras do alfabeto hebraico, Aleph e Beth, correspondentes ao burro e ao boi. Estas duas estrelas chamam-se em latim Asellus, diminutivo de Asinus, referindo-se portanto a burricos. Diante delas, há um pequeno conglomerado de estrelas, denominado, em latim, Praesepe, que significaria estrebaria, curral, manjedoura, ou presépio.

Assim, quando recriamos o presépio, na festa do Solstício de Inverno, com o Sol na constelação de Capricórnio, estamos a apontar simbolicamente para a outra Porta Solstícial, na constelação de Câncer. 

Para terminar, deixo os meus votos de que também nós sejamos capazes de olhar para o futuro e encontrar sempre o caminho.

Feliz Solstício! ❤



Thursday, November 18, 2021

Dança à volta da fogueira

Ritual encontrado no livro Supersticiones de Galicia, Jesus Rodriguez Lopez, Editorial Nova, 1943, pp 94.



Monday, November 15, 2021

Hoje, na minha mente, voltei ao verão e aos encantamentos com madressilvas e murtas, do Romanceiro de Estácio da Veiga. 


Ao campo se vai Jacinta

Mananhita de São João

Com seu borzeguim de seda,

E saia cor de limão,

Para a ver se erguera o Sol,

As aves cantando vão;

Jacinta a flor das campinas,

Sobre as flores corre a mão;

Uma capela tecera

Das capelas-de-são-joão,

Da cheirosa madressilva

Da verde murta em botão.


Eu sei bem que a magia que eu procuro é a conjugação de um verbo que há muito deixou de o ser, chegando a nós apenas na forma de um mero adjectivo: prazer. Também sei bem que o mecanismo, que me permite encontrar essa magia, é outro verbo: peregrinar.

Para ativar o poder desses dois verbos, é necessário lutar contra a moderna paixão pela historiografia, pelo texto escrito e pelo modo doutrinal. Eu acredito que é necessário abrir-me ao modo imagístico, que se exprime através de episódios esporádicos e intensos, que canalizam um saber que não está expresso em nenhum texto. Também entendo que é absolutamente necessário trazer de volta a velha tribo e esse poderoso sentimento de pertencer a uma comunidade, a um grupo alargado onde posso ser sempre quem realmente sou e onde me rencontro com as minhas memórias, desta e doutras vidas. 

Paul Connerton, no seu livro Como as Sociedades Recordam, diz que aquilo que une as nossas memórias não é o facto de serem contíguas no tempo, mas o facto de fazerem parte de um conjunto de pensamentos comuns a um grupo. Para Connerton é através da pertença a um grupo social que os indivíduos são capazes de adquirir, localizar e evocar as suas memórias. 

Mas, voltemos às palvras iniciais: prazer e peregrinar.

Há uma frase do filme About Time, que frequentemente me ocorre: «The truth is I now don't travel back at all, not even for the day, I just try to live every day as if I've deliberately come back to this one day, to enjoy it» Eu adoro a ideia de olhar para o meu dia, por mais insignificante que seja, e imaginar que fiz uma viagem no tempo, que escolhi este dia, precisamente este dia aparentemente banal e rotineiro, para o viver de novo. Sinto que é este o caminho da Saudade, que nunca foi uma mera palavra, mas um método de transfiguração, de ascensão, como nos ensinou a Dalila Pereira da Costa, no seu livro A Nova Atlântida. Contudo, por vezes, não só sinto que estou a recuar no caminho da Saudade, como sinto mesmo dificuldade em evocar as minhas memórias. Por tudo isso, entendo que preciso cada vez mais da tribo. 

Sim, bem sei, eu sou uma criatura insignificante, nunca tive a força das minhas ancestrais, como poderia eu chamar a tribo? Não há nada a fazer, podem rir-se de mim, mas não me podem parar. Contudo, admito, eu sei bem que não vou encontrar o que procuro. O véu do esquecimento cobre-nos a todos e afunda-nos cada vez mais. Como poderia eu alguma vez trazer de volta a tribo e o caminho da Saudade, quando todos os significados se transformam? Vejamos a simples expressão “dona de casa”: Maria Cátedra Tomás, informa-nos que não só no Minho, como em todo o Noroeste peninsular, «casa es el terreno que le pertenece, los edifícios que existen en el terreno, los animales, las personas, los familiares ausentes e incluso los difuntos»... quando é que a expressão usada por mulheres que casavam vestidas de negro, porque era a cor do poder, passou a ser a  ter uma conotação tão negativa? Alberto Pimentel, em 1905, refere o facto extraordinário (à época) das mulheres do Alto Minho, perderem a virgindade antes do casamento, nas famosas desfolhadas. Bem, elas casavam vestidas de negro e sem serem virgens, precisamente porque eram donas de casa. E iam em peregrinação ao Penedo do Encanto, o ventre ancestral da Mãe. Que, na minha humilde opinião, só tinha esse nome porque aquelas donas de casa sabiam muito bem que o encantamento, mais do que o acto e a palavra, é um estranho processo, mas de algum modo um processo maternal, como diz uma feiteiceira moderna, numa belíssima canção. 

Bem, o Penedo do Encando tem agora o moderno nome de Gravuras Rupestres da Bouça do Colado e fica em Ponte da Barca, na serra Amarela, não muito longe da Serra D’Arga, que também é um lugar profundamente mágico e sagrado. 

Pensar no que querem fazer à Serra D’Arga deprime-me profundamente. Bem, noutro dia falarei de duas estátuas de pedra, uma delas muito grande, que foram encontradas juntas há mais de um século, noutra serra do distrito de Braga, e que têm alguns milhares de anos. Maravilhosas estátuas da Deusa-Mãe e do seu Deus seu filho. Hmm, eu sei bem que me movo por caminhos diferentes, eu não me interesso pelas litanias e os outros não se interessam pela experiência sensorial de tocar e abraçar estátuas de pedras com milhares de anos. É justo. ;) 

Voltemos ao Penedo do Encanto, que data do Calcolítico. Naturalmente, fica num outeiro (outeiro deriva do latim altariu, que significa altar. Outeiro era o monte, que era altar.). Trata-se de uma rocha com formato arredondado, que sai da terra, numa zona onde não há mais rochas, como se fosse o ventre grávido da Mãe Terra a sair para fora do submundo. A rocha está coberta de maravilhosas gravuras rupestres. E se alguém a quiser visitar, é melhor que se apresse, antes que também este chão sagrado se transforme em mais uma mina, no gigantesco projecto mineiro do governo português.

Eu sinto um desespero absoluto, perante a possibilidade da minha Mátria ser assim esventrada. Sei bem que para muitos é indiferente. Contudo, alguém cuja língua materna é português, deveria saber que a língua nasceu no norte, numa terra que antigamente se chamava Calécia e que alguns dizem ter tido origem na conhecida deusa Cailleach. Na verdade, Calécia era o nome da Terra e da Deusa-Mãe, que, quer queiram quer não, é a Mátria daqueles cuja língua materna é o português, qualquer que seja a sua pátria.

Termino com as palavras do meu amigo Grove, que sempre insistiu na «ligação entre a palavra “calliavo”(pedra, em celta), “calhau” (pedra, em português), “cal” (que por acaso é pó de calhau calcário), “kallaikoi” (aquele que vive entre as pedras, em grego), “Calaicos” (que é uma das tribos da Calécia), “Calcedónia” (o nome que os antigos dão a um também antigo povoado, na serra do Gerês, “Caledónia” (que é uma região Escocesa), e também o facto de existir um autêntico culto da pedra, que vai desde o Calcolítico até aos dias de hoje. Por outras palavras, desde a época dos menires (que também são feitos de pedra), atravessando a civilização Castreja (ou a grande nação Pétrea), chegando até ao que resta das tradicionais aldeias Calaicas (que verdade seja dita, ainda se exprimem através da pedra).»

Foto do Penedo do Encanto, retirada da net, autor desconhecido.



Saturday, November 13, 2021

Culto da Deusa-Mãe

“(...) haverá uma intuição arquetipal dos portugueses, afundando suas raízes no mais primevo do seu passado, e que percorrerá sua história, expressando-se nas suas mais específicas e constantes criações, manifestações: entre todas, primando a suadade. Que assim por ela, terá suas raízes na religião desse remoto passado, como pré-história, e proto-história.


(…) Se nossa poesia lírica é uma das manifestações específicas e constantes dessa intuição, ela foi marcada, desde os trovadores galaico-portugueses, pelo diálogo do homem com a Natureza, ou Terra-Mãe, como união procurada, achada e vivida, do adorante com a sua deusa: forma poética que sucederá a outra, antecedente religiosa, como culto arcaico, e que marcará indelevelmente esta poesia com seu cunho de funda religiosidade. Desde então uma religião manifestando-se em forma de poesia.


(…) Porque tudo levará a crer que, no solo e humanidade que constitui agora Portugal, se teria dado no Ocidente uma das mais potentes sobrevivências do substrato pré-ariano, em si detendo na sua tradição a preponderância duma religião de carácter fortemente telúrico e matriarcal, votada ao culto da Deusa-Mãe. Religião de Mistérios, extática, tal como surge nas suas manifestações pré-helénicas. Portugal sendo assim, nesta referência mediterrânea, como um dos núcleos de sobrevivência arcaica, tal como os da Sicília, Tessália, Trácia, Mar Negro. E que aqui, se poderá atribuir e ligar, à forte preponderância dum passado megalítico, que ele, em toda a sua riqueza e esplendor, teria marcado para sempre este solo. (…)


Ao norte do país, no território galaico-português, uma forte tradição dos povos megalíticos vindo-se unir à influência dos povos celtas, criaria uma singular cultura de índole marcadamente telúrica e ginecocrática, que a distinguirá de todos os demais núcleos culturais de sobrevivência pré-indo-europeia entre os países do Ocidente.


Posteriormente, a existência histórica, aqui provada, após a invasão romana, dos cultos orientalizantes trazidos pelas suas legiões, como o de Cíbele, Ísis, Serapis, Mitra, cultos marcadamente iniciáticos, revelará uma afinidade, por parte da humanidade deste território, a formas ligando-se ainda ao culto de mistérios da Grande-Deusa: como novas recorrências, ou sobrevivências, duma religião ancestral.


Sinais haverá, na história da religião deste território, detectáveis desde os testemunhos da pré-história e através da arqueologia, etnologia e tradição, dum mesmo tema que, na sua evolução através dos milénios, se modula sempre renovado e diferente, mas sempre conservando sua coerência e identidade.”


Dalila Pereira da Costa, Da Serpente à Imaculada, Lello & Irmão Editores, Porto, 1984, pag. 20, 21 e 22.


(Copiado de outro dos meus blogs, um a que não dei continuidade.)

Friday, November 12, 2021

A dança nas encruzilhadas

O meu pai era um cristão devoto, que, conhecendo a história da família, já imagina que eu me poderia tornar pagã, pelo que me contou, noite após noite, a Canção de Rolando, numa versão muito própria. Assim, eu cresci a ouvir, vezes sem conta, a descrição de uma batalha sangrenta, de cristãos contra pagãos, em que os pagãos eram diziamdos sem dó nem piedade. O meu pai enaltecia Rolando, o herói invencível. Aquela invencibilidade de Rolando e o desprezo com que matava os indefesos pagãos, acabou por ter o resultado oposto ao que o meu pai esperava. Eu fiquei do lado dos mais fracos e acabei por odiar o herói Rolando. Só muito mais tarde é que percebi que o meu pai estava a contar-me a batalha de Roncesvalles ao contrário, Rolando morreu nessa batalha e as tropas cristãs do imperador Carlos Magno sofreram um pesada derrota, às mãos dos pagãos armados com paus e pedras. Mas esse conhecimento tardio pouco importou, o meu imaginário já estava criado e eu tendo para a versão que me contaram em criança. Muito mais tarde, descobri Orlando Furioso, de Ludovico Ariostro, o poema épico que canta o herói apaixonado, perdido e louco. Ó meus deuses! :D

Moralidade: nós não controlamos nada, o controlo é uma ilusão. Por isso, eu escolho simplesmente deixar-me ir com a corrente, sem mais questionamentos. Lo que será, será. ;)

Voltando ao tema que me trouxe aqui, a dança e as encruzilhadas, deixo esta referência: “As bruxas saem à noite, e dançam com o Diabo nas encruzilhadas (Trás-os-Montes).” Leite de Vasconcelos, Etnografia Portuguesa, volume VIII, pp. 22.

Bem, durante a minha infância, eu ouvi várias histórias de bruxas e feiticeiras, que dançavam nas encruzilhadas e ai de quem se metesse com elas. Talvez seja por isso que eu insisto em ensinar ao meu filho que ele pertence a um povo que dança.

Assim, esta noite, quero deixar-vos um vídeo, que funciona bem como esboço do um ritual mágico no qual eu gostaria de participar. Com algumas mudanças, naturalmente. Para começar, a música poderia estar mais voltada para os ancestrais. A orientação seria outra, a mulher que estivesse a orientar teria que nos ligar à força da magia de outros tempos, através do recurso às velhas palavras ignotas, que eram as únicas reconhecidas como verdadeiramente mágicas, pelo povo e pela igreja que as perseguiu incansavelmente. Mesmo assim, Consiglieri Pedroso ainda recolheu algumas, sobretudo aqui no Minho. Palavras de poder, palavras proibidas, palavras da espiritualidade das mulheres. E, por fim, naqueles momentos de paragem, a pose teria que obedecer a uma cinesiologia mágica. (Hmm… um exemplo de cinesiologia mágica é a imagem de um dedo a fazer no ar movimentos circulares em volta de um eixo imaginário).

Eu acredito que a espiritualidade das mulheres passa pelo corpo e pelo inconsciente. Ah! E pelo prazer. ;)

Então, dançamos? ;) Ver vídeo

La Çarandilheira

Esta semana, perguntei a uma amiga se ela sabia qual era o objecto mágico das feiticeiras, na cultura popular de Trás-os-Montes. É a peneira, naturalmente. ;)

Não se trata apenas das histórias da Maria Feiticeira. :)

”Quem for pedir, de noite, uma peneira tem de trazê-la tapada, seja com o que for.” Leite Vasconcelos, Etnografia Portuguesa, volume VIII, pp. 11. Isto revela que a peneira não era um objeto meramente profano, tinha um cariz sagrado.

Mesmo na velha música popular, ainda há a noção de perigo do feitiço que é tecido quando três feiticeiras peneiram, amassam e cozem juntas, enquanto sarandilham… e dançam.

A música La Çarandilheira é muito antiga e conta-nos precisamente a história de três mulheres que se encontram para cozinhar ritualmente e que dançam enquanto cozinham, entretanto chega o marido de uma delas e espanca-as às três. É a dança que as denuncia. O último verso desta velha canção mirandesa nem sempre é cantado, e mesmo quando é varia, mas ou diz que andava o demo nas três ou que o demo levou as três.

La Çarandilheira.




Thursday, November 11, 2021

A dança das nossas fragonas

Bem, a noite passada, voltei outra vez à Etnografia do Leite de Vasconcelos, no volume VIII ele escreve acerca das festividades populares. Quando chegamos a meio de Janeiro, há a festa de S. Gonçalo. Esta festa era uma festa das mulheres. 

No início do século XX, ainda se praticavam os velhos rituais pagãos. Leite de Vasconcelos refere as danças e a algazarra das mulheres dentro da igreja, em Amarante, e mostra-se chocado com a descompustura da ação final, mas não é capaz de nos dizer exactamente que ação era esta. Mas outros foram. Assim, sabe-se que no final da dança, que decorria dentro da igreja depois das celçebrações religiosas, as mulheres levantavam as saias e mostravam o sexo ao santo. Bem, à laia de justificação, Leite de Vasconcelos diz que “S. Gonçalo desempenha em geral um papel pronunciadamente fálico”. Basta ver que, ainda em Amarante, o manjar ceremonial desta festa era um bolo de trigo e a estes pães/bolos dava-se o nome de quilhões (testículos). 

As lendas também ligavam S. Gonçalo a uma personagem feminina conhecida como D. Loba - o que me leva a pensar se isto não estará relacionado com as lupercaes, que se celebravam em Roma a 15 de fevereiro, em honra do deus Pan, mas nas quais também estava presente a memória da loba.

Voltemos às Fragonas – num texto do final do século XIX,, da autoria de um frade e com o título de O Folguedo, foi esse o nome que o frade deu às mulheres que dançavam ao S. Gonçalo. Fragonas eram mulheres do campo, rudes e agrestes. 

Na minha opinião, estas mulheres devem ser lembradas, não nos podemos esquecer delas (e de tantas outras!)… e também não nos podemos esquecer que a dança era também uma forma de culto, sobretudo para as mulheres do norte de Portugal.



Wednesday, November 10, 2021

Magusto

Este post foi escrito para responder á seguinte questão: existe alguma palavra portuguesa para Samhain? Resposta: sim, existe, é Magusto.

A palavra magusto vem do latim magnus ustus, que significa grande fogueira. Assim, o nome português para Samhain seria Grande Fogueira, ou Magusto. 

Sabemos que os Magustos começavam no dia 28 de outubro, nas festas dos apóstolos S. Simão e S. Judas Tadeu, e que se prolongavam até ao dia 11 de novembro. 

Esta data não surge por acaso, pois com a reforma do calendário em 1582, pelo papa Gregório XIII, passou-se do dia 4 para o dia 15 de outubro, tendo esses 10 dias sido retirados por o calendário estar já completamente desajustado do ciclo solar. Acredito que foi pela confusão que isto criou, que a festividade do 1º de novembro, passou para o dia 11. Assim, o nosso tradicional Magusto no dia 11 de novembro, continua a apresentar-se como herança cultural da nossa velha festa da Grande Fogueira ou, se quisermos, Samhain.

Contudo, em Trás-os-Montes o grande magusto era o Magusto dos Santos, que se celebrava (e ainda celebra) no dia 1 de novembro, dia de Todos os Santos.

Para Leite de Vasconcelos, o Magusto dos Santos é uma reminiscência da tradição celta que comemora o fim do verão e início do inverno, o fim de um ciclo e o início de outro. O Magusto dos Santos era a  celebração de um ritual agrário e fúnebre, durante o qual se faziam oferendas em géneros alimentares às almas dos mortos.

Também em Trás-os-Montes, na pequena aldeia de Cidões, concelho de Vinhais, encontramos ainda esta velha tradição numa grande fogueira e no banquete cozinhado nos velhos caldeirões (potes de ferro de três pés). Na noite de 31 de Outubro, em Cidões celebra-se como sempre se celebrou esta noite mágica, com folia e transgressão, com generosidade e alegria. E com oferendas pelas almas dos mortos, que se traduzem na comida que se oferece a todos os forasteiros que os velhos deuses queiram trazer àquela encruzilhada. É um esforço gigantesco, pois trata-se de uma aldeia com menos de 100 habitantes que, nessa noite, dá de comer a cada vez mais pessoas, em 2019 eram muitas centenas ou mesmo milhares de pessoas. Mas não é só nesse sentido que é surpreendente, o que me deixa maravilhada é o facto de terem conseguido trazer esta festividade até ao presente, sem qualquer tipo de transformação, quando já no Sermão de Santo Eloy, do século VII, eram proibidas as fogueiras nas encruzilhadas.  

Bem, eu tenho particular carinho pela velha tradição da Grande Fogueira, pelo acto de dar de comer a quem aparecer, pelas histórias de arrepiar de outros tempos, pelas tropelias dos rapazes que evocam as energias renovadoras e propiciatórias do caos que caracteriza o fim e princípio de ciclo.

Na tradição portuguesa, a encruzilhada é o espaço sagrado onde a velha magia acontece e o velho pote de três pés, que antigamente se chamava caldeirão e, em tempos ainda mais recuados, tinha o nome de alguidar, é também o elemento da arte, por excelência.

No livro O Povo Portuguez nos seus Costumes, Crenças e Tradições, de 1885, Teófilo Braga diz-nos que era nas encruzilhadas, ou no encontro dos caminhos, que colocavam o caldeirão mágico. Almeida Garrett, no Arco de Sant'Anna, também refere “feitiços que fervem n'um caldeirão de trez pés”. Mas é através de Gil Vicente e do seu Auto das Fadas, que nos chega este belo encantamento:

Este caminho vae para lá

Est'outro atravessa cá;

Vós no meio, alguidar,

Que aqui cruz não hade estar.

Nos meus sonhos velhos e insanos, ainda se acende a Grande Fogueira nas encruzilhadas e as Çarandilheiras ainda cozinham o banquete, enquanto dançam à volta da fogueira, e ainda se talha o ar, com o encatamento que vem de tempos imemoriais e que, agora, se adapta:

Este caminho vae para lá

Est'outro atravessa cá;

Vós no meio, caldeirão,

Que aqui minas não entrarão!


Sim, eu sei… “morreram as velhas todas, já não há quem talhe o ar!” 

Contudo, queiramos ou não, o tempo cíclico repete-se e amanhã é dia 11 de novembro. Uma das coisas que aquece o meu coração é saber que amanhã, nas nossas escolas, por todo o país, milhares de crianças estarão a celebrar esta nossa velha festa, o Magusto.