Wednesday, November 10, 2021

Magusto

Este post foi escrito para responder á seguinte questão: existe alguma palavra portuguesa para Samhain? Resposta: sim, existe, é Magusto.

A palavra magusto vem do latim magnus ustus, que significa grande fogueira. Assim, o nome português para Samhain seria Grande Fogueira, ou Magusto. 

Sabemos que os Magustos começavam no dia 28 de outubro, nas festas dos apóstolos S. Simão e S. Judas Tadeu, e que se prolongavam até ao dia 11 de novembro. 

Esta data não surge por acaso, pois com a reforma do calendário em 1582, pelo papa Gregório XIII, passou-se do dia 4 para o dia 15 de outubro, tendo esses 10 dias sido retirados por o calendário estar já completamente desajustado do ciclo solar. Acredito que foi pela confusão que isto criou, que a festividade do 1º de novembro, passou para o dia 11. Assim, o nosso tradicional Magusto no dia 11 de novembro, continua a apresentar-se como herança cultural da nossa velha festa da Grande Fogueira ou, se quisermos, Samhain.

Contudo, em Trás-os-Montes o grande magusto era o Magusto dos Santos, que se celebrava (e ainda celebra) no dia 1 de novembro, dia de Todos os Santos.

Para Leite de Vasconcelos, o Magusto dos Santos é uma reminiscência da tradição celta que comemora o fim do verão e início do inverno, o fim de um ciclo e o início de outro. O Magusto dos Santos era a  celebração de um ritual agrário e fúnebre, durante o qual se faziam oferendas em géneros alimentares às almas dos mortos.

Também em Trás-os-Montes, na pequena aldeia de Cidões, concelho de Vinhais, encontramos ainda esta velha tradição numa grande fogueira e no banquete cozinhado nos velhos caldeirões (potes de ferro de três pés). Na noite de 31 de Outubro, em Cidões celebra-se como sempre se celebrou esta noite mágica, com folia e transgressão, com generosidade e alegria. E com oferendas pelas almas dos mortos, que se traduzem na comida que se oferece a todos os forasteiros que os velhos deuses queiram trazer àquela encruzilhada. É um esforço gigantesco, pois trata-se de uma aldeia com menos de 100 habitantes que, nessa noite, dá de comer a cada vez mais pessoas, em 2019 eram muitas centenas ou mesmo milhares de pessoas. Mas não é só nesse sentido que é surpreendente, o que me deixa maravilhada é o facto de terem conseguido trazer esta festividade até ao presente, sem qualquer tipo de transformação, quando já no Sermão de Santo Eloy, do século VII, eram proibidas as fogueiras nas encruzilhadas.  

Bem, eu tenho particular carinho pela velha tradição da Grande Fogueira, pelo acto de dar de comer a quem aparecer, pelas histórias de arrepiar de outros tempos, pelas tropelias dos rapazes que evocam as energias renovadoras e propiciatórias do caos que caracteriza o fim e princípio de ciclo.

Na tradição portuguesa, a encruzilhada é o espaço sagrado onde a velha magia acontece e o velho pote de três pés, que antigamente se chamava caldeirão e, em tempos ainda mais recuados, tinha o nome de alguidar, é também o elemento da arte, por excelência.

No livro O Povo Portuguez nos seus Costumes, Crenças e Tradições, de 1885, Teófilo Braga diz-nos que era nas encruzilhadas, ou no encontro dos caminhos, que colocavam o caldeirão mágico. Almeida Garrett, no Arco de Sant'Anna, também refere “feitiços que fervem n'um caldeirão de trez pés”. Mas é através de Gil Vicente e do seu Auto das Fadas, que nos chega este belo encantamento:

Este caminho vae para lá

Est'outro atravessa cá;

Vós no meio, alguidar,

Que aqui cruz não hade estar.

Nos meus sonhos velhos e insanos, ainda se acende a Grande Fogueira nas encruzilhadas e as Çarandilheiras ainda cozinham o banquete, enquanto dançam à volta da fogueira, e ainda se talha o ar, com o encatamento que vem de tempos imemoriais e que, agora, se adapta:

Este caminho vae para lá

Est'outro atravessa cá;

Vós no meio, caldeirão,

Que aqui minas não entrarão!


Sim, eu sei… “morreram as velhas todas, já não há quem talhe o ar!” 

Contudo, queiramos ou não, o tempo cíclico repete-se e amanhã é dia 11 de novembro. Uma das coisas que aquece o meu coração é saber que amanhã, nas nossas escolas, por todo o país, milhares de crianças estarão a celebrar esta nossa velha festa, o Magusto.

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