Monday, November 15, 2021

Hoje, na minha mente, voltei ao verão e aos encantamentos com madressilvas e murtas, do Romanceiro de Estácio da Veiga. 


Ao campo se vai Jacinta

Mananhita de São João

Com seu borzeguim de seda,

E saia cor de limão,

Para a ver se erguera o Sol,

As aves cantando vão;

Jacinta a flor das campinas,

Sobre as flores corre a mão;

Uma capela tecera

Das capelas-de-são-joão,

Da cheirosa madressilva

Da verde murta em botão.


Eu sei bem que a magia que eu procuro é a conjugação de um verbo que há muito deixou de o ser, chegando a nós apenas na forma de um mero adjectivo: prazer. Também sei bem que o mecanismo, que me permite encontrar essa magia, é outro verbo: peregrinar.

Para ativar o poder desses dois verbos, é necessário lutar contra a moderna paixão pela historiografia, pelo texto escrito e pelo modo doutrinal. Eu acredito que é necessário abrir-me ao modo imagístico, que se exprime através de episódios esporádicos e intensos, que canalizam um saber que não está expresso em nenhum texto. Também entendo que é absolutamente necessário trazer de volta a velha tribo e esse poderoso sentimento de pertencer a uma comunidade, a um grupo alargado onde posso ser sempre quem realmente sou e onde me rencontro com as minhas memórias, desta e doutras vidas. 

Paul Connerton, no seu livro Como as Sociedades Recordam, diz que aquilo que une as nossas memórias não é o facto de serem contíguas no tempo, mas o facto de fazerem parte de um conjunto de pensamentos comuns a um grupo. Para Connerton é através da pertença a um grupo social que os indivíduos são capazes de adquirir, localizar e evocar as suas memórias. 

Mas, voltemos às palvras iniciais: prazer e peregrinar.

Há uma frase do filme About Time, que frequentemente me ocorre: «The truth is I now don't travel back at all, not even for the day, I just try to live every day as if I've deliberately come back to this one day, to enjoy it» Eu adoro a ideia de olhar para o meu dia, por mais insignificante que seja, e imaginar que fiz uma viagem no tempo, que escolhi este dia, precisamente este dia aparentemente banal e rotineiro, para o viver de novo. Sinto que é este o caminho da Saudade, que nunca foi uma mera palavra, mas um método de transfiguração, de ascensão, como nos ensinou a Dalila Pereira da Costa, no seu livro A Nova Atlântida. Contudo, por vezes, não só sinto que estou a recuar no caminho da Saudade, como sinto mesmo dificuldade em evocar as minhas memórias. Por tudo isso, entendo que preciso cada vez mais da tribo. 

Sim, bem sei, eu sou uma criatura insignificante, nunca tive a força das minhas ancestrais, como poderia eu chamar a tribo? Não há nada a fazer, podem rir-se de mim, mas não me podem parar. Contudo, admito, eu sei bem que não vou encontrar o que procuro. O véu do esquecimento cobre-nos a todos e afunda-nos cada vez mais. Como poderia eu alguma vez trazer de volta a tribo e o caminho da Saudade, quando todos os significados se transformam? Vejamos a simples expressão “dona de casa”: Maria Cátedra Tomás, informa-nos que não só no Minho, como em todo o Noroeste peninsular, «casa es el terreno que le pertenece, los edifícios que existen en el terreno, los animales, las personas, los familiares ausentes e incluso los difuntos»... quando é que a expressão usada por mulheres que casavam vestidas de negro, porque era a cor do poder, passou a ser a  ter uma conotação tão negativa? Alberto Pimentel, em 1905, refere o facto extraordinário (à época) das mulheres do Alto Minho, perderem a virgindade antes do casamento, nas famosas desfolhadas. Bem, elas casavam vestidas de negro e sem serem virgens, precisamente porque eram donas de casa. E iam em peregrinação ao Penedo do Encanto, o ventre ancestral da Mãe. Que, na minha humilde opinião, só tinha esse nome porque aquelas donas de casa sabiam muito bem que o encantamento, mais do que o acto e a palavra, é um estranho processo, mas de algum modo um processo maternal, como diz uma feiteiceira moderna, numa belíssima canção. 

Bem, o Penedo do Encando tem agora o moderno nome de Gravuras Rupestres da Bouça do Colado e fica em Ponte da Barca, na serra Amarela, não muito longe da Serra D’Arga, que também é um lugar profundamente mágico e sagrado. 

Pensar no que querem fazer à Serra D’Arga deprime-me profundamente. Bem, noutro dia falarei de duas estátuas de pedra, uma delas muito grande, que foram encontradas juntas há mais de um século, noutra serra do distrito de Braga, e que têm alguns milhares de anos. Maravilhosas estátuas da Deusa-Mãe e do seu Deus seu filho. Hmm, eu sei bem que me movo por caminhos diferentes, eu não me interesso pelas litanias e os outros não se interessam pela experiência sensorial de tocar e abraçar estátuas de pedras com milhares de anos. É justo. ;) 

Voltemos ao Penedo do Encanto, que data do Calcolítico. Naturalmente, fica num outeiro (outeiro deriva do latim altariu, que significa altar. Outeiro era o monte, que era altar.). Trata-se de uma rocha com formato arredondado, que sai da terra, numa zona onde não há mais rochas, como se fosse o ventre grávido da Mãe Terra a sair para fora do submundo. A rocha está coberta de maravilhosas gravuras rupestres. E se alguém a quiser visitar, é melhor que se apresse, antes que também este chão sagrado se transforme em mais uma mina, no gigantesco projecto mineiro do governo português.

Eu sinto um desespero absoluto, perante a possibilidade da minha Mátria ser assim esventrada. Sei bem que para muitos é indiferente. Contudo, alguém cuja língua materna é português, deveria saber que a língua nasceu no norte, numa terra que antigamente se chamava Calécia e que alguns dizem ter tido origem na conhecida deusa Cailleach. Na verdade, Calécia era o nome da Terra e da Deusa-Mãe, que, quer queiram quer não, é a Mátria daqueles cuja língua materna é o português, qualquer que seja a sua pátria.

Termino com as palavras do meu amigo Grove, que sempre insistiu na «ligação entre a palavra “calliavo”(pedra, em celta), “calhau” (pedra, em português), “cal” (que por acaso é pó de calhau calcário), “kallaikoi” (aquele que vive entre as pedras, em grego), “Calaicos” (que é uma das tribos da Calécia), “Calcedónia” (o nome que os antigos dão a um também antigo povoado, na serra do Gerês, “Caledónia” (que é uma região Escocesa), e também o facto de existir um autêntico culto da pedra, que vai desde o Calcolítico até aos dias de hoje. Por outras palavras, desde a época dos menires (que também são feitos de pedra), atravessando a civilização Castreja (ou a grande nação Pétrea), chegando até ao que resta das tradicionais aldeias Calaicas (que verdade seja dita, ainda se exprimem através da pedra).»

Foto do Penedo do Encanto, retirada da net, autor desconhecido.



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