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Saturday, June 18, 2011

Menina e Moça

«O livro das Saudades [Menina e Moça, de Bernardim Ribeiro] sendo entre nós o mais perfeito testemunho da espiritualidade e tradição da nossa etnia celta, ele será também o mais livre de influências, adaptações ou posteriores apresentações em forma cristianizada desse anterior fundo: vindo até nós, na Idade Média, das Ilhas britânicas ou da Armórica, como aquelas sofridas pelos romances «ao divino», ou romances do «ciclo bretão»; ou ainda as que teriam sofrido as nossas lendas de origem arcaica.
Ele será assim o livro mais totalmente pagão, ou pré-cristão, da nossa cultura.
Criptomnesicamente, realizando uma regressão, ou repossessão, duma idade nossa espiritual e época cultural revoluta. Esse, um dos seus altos testemunhos, nacional e europeu, para nós, agora, vivendo no século XX.»


Dalila Pereira da Costa, A Nova Atlântida.

Autumn by Anne-Louis Girodet de Roussy-Trioson (1767 – 1824).


Tuesday, January 26, 2010

O que podem ser os mouros da tradição popular

“As tradições populares, a que anda ligado o nome de mouros, são alguns séculos mais velhas que a aparição dos mouros (árabes) na Península; ou, para tirarmos a esta afirmativa o seu ar paradoxal, o nome de mouros intrometeu-se sub-repticiamente num corpo de tradições, que estavam formadas, muito antes da invasão árabe na Espanha.” (…) “Assim os monumentos atribuídos aos mouros não só estavam em ruínas muito antes da aparição dos mouros no nosso país, mas as tradições, que neles se localizaram, ou nunca se formariam, ou datam necessariamente do dia em que o paganismo, deixando de ser uma realidade, começou a entrar na sua elaboração lendária.” (…) “Como o nome de mouro veio ingerir-se e dominar nas legendas do velho mundo pagão, é o que o mesmo nome de pagão nos parece explicar. Pagão era, como se sabe, a denominação favorita, dada pelos cristãos aos religionários que eles vieram destronar. Ora que este nome não somente estava em uso ao tempo da invasão do árabes, mas que foi, conjuntamente com o de mouros, transferido para os árabes, vê-se tanto pelas antigas crónicas (Chronicon Conimbricense, etc.); como pelos instrumentos públicos (Viterbo, Eluc., V. Terra de pagons). Os nomes de mouro e pagão tornaram-se sinónimos, e, como quase sempre sucede no conflito de dois sinónimos, prevaleceu o vocábulo que tinha por si uma realidade objectiva: o nome abstracto de pagão desaparece, o étnico de mouro fica, substituindo aquele em todas as suas aplicações, sem embargo dos mais grosseiros Anacronismos.” (…) “Pois que contra esta identificação não reagiu a qualidade de estrangeiro, saliente no árabe, claro é que a reminiscência do laço étnico, que prendia os construtores dos antigos monumentos do nosso país aos seus subsequentes habitantes, estava completamente obliterada. Este fenómeno, a muitos respeitos deplorável, é um produto legitimo da revolução cristã. A vitória do Cristianismo tinha como resultado infalível abrir um abismo profundo entre a geração, que o abraçou definitivamente, e as gerações passadas, que o haviam combatido: dum lado a cidade de Deus, doutro a cidade dos demónios. A negação de todo o parentesco moral entre o cristão e o pagão continha em si a tendência para a negação de todo o parentesco material, e esta tendência apenas podia ser contrariada pela autenticidade das tradições genealógicas. Mas este elemento de resistência, que só conseguiria tirar forças da perpetuidade do velho culto dos mortos, dissolve-se depressa em virtude do facto contrário: as gerações cristãs não só não tinham que ir fazer aos túmulos dos seus passados, mas deviam esforçar-se por esquecer quanto antes aquela desonrosa ascendência. Concebe-se pois uma época, em que os pagãos, esses fautores duma civilização destruída e amaldiçoada, que se sumiram no nada sem deixar representantes, nem, ao que parecia, descendentes, comecem a desenhar-se no vago do passado, como um povo, a todas as luzes estranho aos povos cristãos, e principalmente notável pela guerra ímpia, feita ao Cristo e à sua Igreja — característica que é a afinidade electiva e única que os aproxima dos mouros e determina a sua identificação com eles. Contra a indiferença, com que a tradição popular deixa cair no olvido as suas origens étnicas, parece protestar o vivo interesse, que ela consagra às histórias dos «mouros encantados», e o zelo com que no-las tem transmitido de geração em geração.” (…) “Lembremos que o Cristianismo acreditava tão deveras na realidade dos deuses pagãos e no seu poder taumatúrgico, como os próprios pagãos. O que os propagandistas da religião nova não concediam era a sua natureza divina. Tinham-nos por demónios. Mas, deuses, ou demónios, eram imortais, de sorte que a crença popular nestas entidades sobre-humanas e nos seus milagres não tinha sido ofendida no essencial, antes fora robustecida com uma consagração solene e insuspeita. E o que se vê também é que esta crença manteve uma independência tal qual contra o ensino da Igreja. Esta não pôde naturalizar os velhos deuses no pandemónio católico, pois que os vemos hoje ainda, bem que sombras duma sombra, nos mesmos lugares das suas antigas glórias (Fontes, etc.), sem feição alguma que os assemelhe ao diabo.” (…) “Resulta do que fica dito, que neste mundo de mouros encantados se amontoam muitíssimas reminiscências do antigo mundo pagão, e só do mundo pagão, numa confusão aparente, que a crítica está no caso de deslindar. O que há aí de realmente histórico é a memória dum povo, hostil ao Cristianismo, que deixou inumeráveis vestígios da sua existência nos mil monumentos em ruínas dispersos pelo país — os Pagãos.”

Excertos do texto de Martins Sarmento, O que podem ser os mouros da tradição popular, 1881.
Texto integral aqui.

Fica também um texto de André Pena, sobre os mouros galegos.

E para terminar, deixo o link para um bela compilação de lendas de mouros na região de Trás-os-Montes.

Wednesday, December 30, 2009

Peregrinos

«Vamos dedicar um pensamento a todos aqueles que, século após século, tomavam o bordão do peregrino, fossem pagãos ou cristãos, e partiam por estradas, que mal chegavam a ser trilhos, através de rios, que quase se não podiam vadear, pelo meio de florestas, onde o lobo caçava em alcateias, através de pauis de lama movediça, onde se enluravam serpentes-de-água venenosas: sujeitos à chuva, aos temporais ventosos, ao granizo saraivante, atingidos pelo sol ou gelados pelo frio, tendo à noite, como único abrigo, a fralda do hábito puxada por cima da cabeça; tudo isto depois de deixarem lar e família sem saber se os voltavam a ver, para chegar - pelo menos uma vez na vida - a um lugar onde habitava a divindade.»

Louis Charpentier, Les Mystéres de la Cathédrale de Chartres

Ao visitarmos os lugares sagrados recebemos a energia do lugar, mas também nós deixamos lá a nossa energia.
Interrogo-me se, nos tempos modernos de conforto e facilidade de acesso aos antigos lugares sagrados, não nos fará falta a longa, difícil e árdua peregrinação?

Monday, March 09, 2009

O tempo cíclico

Hoje ao responder a um post no blog de um amigo, voltei ao sempre eterno tema do tempo cíclico. É um dos meus estandartes. Vejamos a este respeito o que nos diz Philip Carr-Gomm:

“Pensa na tua vida e nos respectivos acontecimentos. Coloca-os numa linha com o teu nascimento numa ponta e a morte na outra. E aqui tens uma linha isolada, que começa e termina no vazio. (...) Existem outras linhas que podem estender-se em paralelo com a tua, colidir com ela ou atravessá-la, mas todas elas terminarão como começaram: com nada. (...) Mas ambos sabemos que a vida não é bem assim: sabemos que a morte é seguida pelo renascer, tal como nos comprova o renascer da vida que ocorre na Primavera e, se tivermos sorte, vemos isso também quando procuramos no fundo da nossa memória.”

“Nascemos, vivemos e morremos. (...) O que é que está no centro deste círculo? O quê ou quem é responsável por este movimento circular? (...) A minha alma, a minha verdadeira identidade, que perdura em todas as minhas vidas.”

“Agora esqueçamo-nos do indivíduo e olhemos para o mundo. As estações do ano são claramente cíclicas: sucedem-se umas às outras, inexoravelmente. Por isso podemos dispô-las num círculo, o círculo do ano. O mesmo acontece com os dias: cada dia nasce de madrugada, atinge o seu ponto alto ao meio dia e depois começa a escurecer, dando lugar à noite, altura em que morre, renascendo depois na madrugada seguinte. (...) O círculo do dia e o círculo do ano tem afinidades: o Inverno é como a morte da noite, quando tudo fica quieto. A Primavera é como o nascer do dia, quando os pássaros acordam e louvam o céu. O Verão é como o meio-dia, uma altura de calor máximo e em que o crescimento é maior. E o Outono é como o fim de tarde, pois até mesmo as suas cores se parecem com as cores do pôr-do-sol. Temos assim dois ciclos da Terra em sintonia. (...) aquilo que provoca especificamente o ciclo do dia e as estações do ano é o sol. É ele que faz girar a roda. (...) E que ligação julgas existir entre o teu ciclo e o ciclo da Terra? (...) A primavera corresponde à época da tua infância, o Verão à fase mais jovem da idade adulta, o Outono à tua fase madura e o Inverno à tua morte. E no centro da tua vida está a tua alma, tal como o centro da roda da Terra está o sol.”

A roda do ano, a roda óctupla, “baseia-se na profunda e misteriosa ligação entre a fonte das nossas vidas individuais e a fonte da vida do Planeta, reconhecendo oito períodos particulares durante o ciclo anual que são muito significativos e marcados por observâncias especiais. Desses períodos, quatro são de carácter astral (directamente associados à posição do sol no céu), enquanto os outro quatro se encontram relacionados com a vida da Terra e as fases da lua. Se associarmos o sol ao princípio masculino e a lua ao princípio feminino, verificamos que este esquema oferece um conjunto equilibrado de ligações entre as observâncias correspondentes a um e a outro desses princípios.”

Citações retiradas do livro Os Mistérios dos Druidas, de Philip Carr-Gomm, Editora Zéfiro, 2008.

p.s. Já agora, deixo o link para o lugar dos meus sonhos e devaneios: Clareirazinha. :)

Thursday, January 22, 2009

Alimento sagrado

CAMPBELL: Nenhum de nós estaria aqui se não estivéssemos comendo continuamente. O que você come é sempre algo que, um momento antes, estava vivo. Este é o mistério sacramental do alimento e da comida, que raramente nos vem à mente, quando nos sentamos para comer. Se dizemos graças, antes das refeições, agradecemos a essa figura provinda da Bíblia, pelo nosso alimento. Mas, nas mitologias primitivas, quando se preparavam para comer, as pessoas agradeciam ao animal, que estavam prestes a consumir, por ter se doado, em sacrifício voluntário.
Há um dito magnífico, num dos Upanixades: "Oh maravilhoso, oh maravilhoso, oh maravilhoso, eu sou alimento, eu sou alimento, eu sou alimento! Eu sou um comedor de alimento, eu sou um comedor de alimento, eu sou um comedor de alimento!"
Já não pensamos assim, hoje, a respeito de nós mesmos. Mas agarrando-se a você mesmo, e não se permitindo ser alimento, você pratica o acto negativo primordial, enquanto negação da vida. Você interrompe o fluxo! E a liberação do fluxo é a grande experiência do mistério, inerente ao acto de agradecer a um animal, que está prestes a ser comido, por ter se doado.
Você também será doado, quando chegar o momento.

O Poder do Mito, Joseph Campbell

Monday, November 17, 2008

Intuição

«Filósofos antigos como Platão, e modernos como Spinoza, Nietzsche, e, na virada do século, Henri Bergson, apontaram para formas superiores e intuitivas de conhecimento, muito acima da razão e dos sentidos. O mesmo fizeram místicos, românticos, poetas e visionários em todas as culturas. Podemos encontrar escolas "intuitivas" na matemática e na ética, e psicólogos como Gordon Allport, Abrabam Maslow, Carl Jung e Jerome Bruner reconheceram a importância da intuição. Na maior parte, porém, a intuição tem sido apenas um assunto periférico no Ocidente, onde o modo reverenciado de conhecer tem sido o empirismo racional, graças, em grande parte, ao fantástico sucesso da ciência.

Nada que seja dito em relação à intuição deve ser entendido como uma depreciação da ciência ou do pensamento racional. Ao combater a autoridade das cambaleantes instituições religiosas, a ciência e o racionalismo libertaram-nos da tirania do dogma e das idéias arbitrárias. A insistência nas provas e na verificação rigorosa, coração e alma do cientificismo, possibilita-nos, coletivamente e ao longo do tempo, separar o verdadeiro do falso. Em uma sociedade pluralista e secular, tais padrões são imperativos. E a ciência deu-nos uma maneira de analisar e modelar com precisão o mundo material, provendo-nos de fartura, conforto e riqueza sem precedentes.

Mas, como quase todas as rebeliões, a revolução científica criou alguns novos problemas. Ensoberbados pelo sucesso, os fanáticos da ciência invadiram terreno anteriormente dominado pela filosofia, pela metafísica, pela teologia e pela tradição cultural. Pretenderam aplicar os métodos que funcionavam tão bem no mundo material para responder questões sobre a psique, o espírito e a sociedade. Através da experimentação e da aplicação da razão, que foi elevada ao pináculo da mente, presumiu-se que chegaríamos a conhecer os segredos do universo e que aprenderíamos a viver. Para realizá-lo, lançamo-nos a aperfeiçoar os instrumentos objetivos do conhecimento; inventamos aparelhos e procedimentos que ampliavam o alcance dos nossos sentidos e tomavam mais rigorosos nossos cálculos e nossa lógica. Com o tempo, nossas organizações e instituições educacionais transformaram o cientificismo na condição sine qua non do conhecimento, no modelo de como pensar.

Essa tendência ideológica reflete-se no nosso vocabulário; as palavras que sugerem veracidade originam-se da tradição racional-empírica. Nós usamos a palavra lógico, mesmo quando a lógica não foi aplicada, para indicar que uma observação parece correta. Tão grande é a consideração para com a razão que usamos a palavra razoável para referirnos a qualquer coisa que julguemos apropriada, por exemplo: "Mil cruzeiros é um preço razoável para pagarmos por uma entrada de teatro." Também temos a forma substantiva de razão, que é o que lhe pedem que lhe mostre para justificar uma proposição. As pessoas exigem razões; elas raramente dizem "Dê-me uma boa sensação de por que você pensa que ele está errado", ou "Qual é a sua intuição para supor que exercícios físicos irão curar minha insônia?"

A palavra racional, que, estritamente falando, sugere o uso da razão e da lógica, tornou-se sinônimo de sanidade mental, enquanto que irracional conota loucura. Sensato e fazer sentido, junto com seu antônimo sem sentido, relacionam solidez e verdade com os órgãos dos sentidos, como se o significado adequado viesse somente através desses canais - a convicção clássica do empirismo. Objetivo veio a significar justiça, honestidade e precisão, sugerindo que a única maneira de se obter conhecimento puro é permanecer distanciado e tratar o que quer que se estude como um objeto material. Quanto à palavra científico, ela é a justificação definitiva para qualquer asserção.

O aspecto desastroso dessa tendência não é a veneração da racionalidade ou a insistência nas evidências experimentais, mas a depreciação da intuição. Todo o empenho do cientificismo tem sido para minimizar a influência do conhecedor. Mas sabemos, por comprovação da própria ciência, que a consagrada separação teórica entre observador e observado, objeto e sujeito, não mais pode ser admitida. Como Werner Heisenberg observou ao formular o princípio da incerteza, que provou que no nível subatômico o ato da observação influencia o que está observado: "Mesmo na ciência, o objeto da pesquisa não é mais a natureza em si mas a investigação da natureza pelo homem." Além do que, toda disciplina está enraizada em um conjunto de suposições e crenças (o que o filósofo Thomas Kuhn chamou de paradigma) e, como todos nós, os cientistas individualmente possuem convicções, apegos e paixões que influenciam seu trabalho. Realmente, sem isso o cientista nunca reuniria coragem e tenacidade para descobrir alguma coisa que valha a pena.

As instituições que nos ensinam a usar nossas mentes, assim como as organizações onde as usamos, estão de tal modo comprometidas com o ideal racional-empírico, que a intuição raramente é discutida, quanto mais aplaudida ou encorajada. Desde a escola primária até a faculdade, e na maioria dos nossos ambientes de trabalho, somos ensinados a desenvolver o modelo idealizado de cientificismo no nosso modo de pensar, na solução de nossos problemas e nas tomadas de decisões. Como resultado, a intuição é submetida a diversas formas de censura e repressão. O que a psicóloga Blythe Clinchy disse com relação ao início da educação aplica-se a toda a nossa cultura: "Podemos convencer nossos alunos de que esse modo de pensamento é uma maneira irrelevante ou indecente de abordar a matéria formal. Nós realmente não aniquilamos a intuição; pelo contrário, eu acho que nós a enterramos." Há duas ironias nessa situação. Primeiro, o modelo que procuramos imitar é uma espécie de ficção, errado em algumas de suas suposições e inapropriado em muitas de suas aplicações. Segundo, a intuição é um contribuinte vital, embora restrito, às próprias instituições que tentaram enterrá-la.

"Se a sua única ferramenta for um martelo", dizia Abraham Maslow, "você começa a ver tudo em termos de pregos." Se os seus únicos instrumentos cognitivos forem racionais-empíricos, sua visão ficará restrita ao que puder ser analisado e medido. Indague as grandes questões metafísicas sobre a identidade humana e a natureza da realidade, e receberá de volta respostas materialistas. O eu passa a ser visto como um catálogo de traços de personalidade analisáveis, e o cosmos torna-se uma coleção de objetos separados do eu, uma visão incompleta com conseqüências que vão desde o desenvolvimento limitado do potencial humano até a pilhagem da natureza. Apenas a intuição profunda pode penetrar o transcendente e iluminar o sublime.»


PHILIP GOLDBERG
O QUE É INTUIÇÃO e como aplicá-la na vida diária

September Morn by Paul Emile Chabas, 1912.


Monday, October 13, 2008

Mestre Lima de Freitas

"O mais importante de tudo é saber quem sou: não o que penso ser ou desejo ser ou pareço ser ou quero parecer. O que sou. Na total disponibilidade, com a falta de vergonha do simples, do ignorante, do arrogante.
Eu - sem o meu ego a fazer obstáculo. Totalmente desinteressado de mim mesmo, e das consequências que poderá acarretar para a minha pessoa esse entregar-me todo nas mãos de quem sou. Tamanha sinceridade só tem por limite Deus.
Mas ousá-lo é bem difícil. Estou cheio dos outros! O meu ego timorato acolhe-se sucessivamente nos alvéolos de assumir o que outrem de mim exige, sendo outro outrem dia a dia, ao sabor dos outros. Outros que a mim são iguais nisso de não serem senão outrem: e então, quem veradeiramente é?"

21 de Maio de 1986, Diário 20, Lima de Freitas

Friday, September 05, 2008

Aos homens de outros tempos, àqueles que viviam no cimo das montanhas...

Aceitar a nossa verdadeira herança é tornarmo-nos outros. É aceitar que tudo no nosso mundo se vai desintegrar e refazer. Que perderemos o conforto daquilo que agora nos é familiar. Que ficaremos também nós no cimo do monte, a sós como um mundo onde todas as distâncias e todas as proporções se alteram.

Rainer Maria Rilke diz-nos que: "estas mudanças geram subitamente muitas outras e, como acontecia ao homem no cimo da montanha, nascem então percepções invulgares e sensações estranhas que parecem exceder o limite do suportável. Mas também elas têm por força de ser vividas. Temos de aceitar a nossa existência, por mais longe que ela chegue; tudo nela tem de ser possível, mesmo o inaudito. É no fundo esta a única forma de coragem que nos é exigida: que encaremos ousadamente o mais estranho, o mais fabuloso, o mais inexplicável. Que os homens tenham sido cobardes a este respeito trouxe incontáveis danos à vida; as experiências a que se chama "aparições", o "mundo dos espíritos", a morte, todas estas coisas tão familiares foram expulsas da vida por uma resistência quotidiana, de tal forma que os sentidos com que as poderíamos apreender regrediram. Já para não falar de Deus. Mas o medo do inexplicável não empobreceu apenas a existência do indivíduo, cerceou também as relações entre uma pessoa e outra, como se as retirasse do leito do rio das possibilidades infinitas e as levasse para o terreno baldio das margens onde nada acontece. Pois não é apenas por inércia que as relações humanas são tão indizivelmente monótonas, repetindo-se de caso para caso sem renovação, é porque os homens receiam qualquer experiência que julguem ultrapassar as suas forças. Mas só quem está preparado para tudo, só quem nada exclui, nem mesmo o mais enigmático, viverá como uma coisa viva a relação com outra pessoa e irá ele próprio até ao limite da sua existência. Pois se concebermos a existência do indivíduo como um espaço maior ou mais pequeno, percebemos que muitos conhecem apenas um canto do seu espaço, um lugar à janela, uma passadeira por onde caminham para trás e para diante."

De que temos medo afinal? Rilke bem que insiste connosco que "não temos razão para desconfiar do nosso mundo porque ele não está contra nós. Se o mundo tem sustos, são os nossos sustos, se tem abismos, são abismos que nos pertencem, se tem perigos, temos que tentar amá-los. E se guiarmos a nossa vida pelo princípio de nos atermos sempre ao difícil, veremos que o que agora ainda nos parece estranho se tornará familiar e leal. Como podíamos nós esquecer os velhos mitos que estão na origem de todos os povos; o mito do dragão que no último momento se transforma em princesa; os dragões da nossa vida são porventura todos eles princesas que apenas esperam ver-nos belos e valorosos por uma vez. No fundo, o que nos parece terrível talvez seja indefeso, talvez espere a nossa ajuda."

Tuesday, August 26, 2008

Poderá um grupo de indivíduos ou um indivíduo isolado fazer realmente alguma diferença?

Mihaly Csinkszentmihalyi, no seu livro: The Evolving Self , de 1993, publicado em Portugal pelo Círculo de Leitores em 1998, com o título de Novas Atitudes Mentais, diz-nos o seguinte: "O actual entendimento da causalidade sugere que os acontecimentos são determinados pela interacção de possibilidades aleatórias com as leis imutáveis da natureza. Uma borboleta a adejar sobre uma orquídea na margem do Amazonas pode desencadear uma cadeia de perturbações atmosféricas infinitesimais eventualmente susceptíveis de resultar num furacão capaz de destruir centenas de casas na Florida. O modo como os furacões se formam pode ser explicado em termos de diferenciais de pressão e de temperatura; mas o voo da borboleta – e as centenas de outras causas que atenuam ou ampliam os efeitos do movimento inicial das asas da borboleta – poderá permanecer para sempre na esfera imprevisível das possibilidades aleatórias.

Apanhados entre as inflexíveis leis da natureza e o capricho de acontecimentos muito para lá de qualquer previsibilidade, que podemos nós fazer senão ir com a onda? Um fatalismo resignado parece ser a resposta mais racional à irracionalidade da vida. Na prática, isto significa desistir da responsabilidade, da reflexão e da escolha. Significa seguir automaticamente quaisquer necessidades ou desejos que os genes tenham codificado nos nossos cromossomas, pelo menos dentro dos limites aceites pela sociedade em que vivemos. Ocuparmo-nos do mais importante – o nosso conforto, prazeres e ambições – é, de acordo com este cenário, praticamente tudo o que podemos fazer.

Neste ponto, começa a emergir um estranho paradoxo. Se toda a gente adoptar esta atitude – se todos nos submetermos às forças determinantes da causalidade – é muito improvável que a humanidade consiga sobreviver. Os que têm acesso aos recursos continuarão a açambarcá-los a um ritmo cada vez mais acelerado, os que nada têm erguer-se-ão para exigir o seu quinhão, e a guerra de todos contra todos será inevitável."

Volto a perguntar: poderá um pequeno grupo de indivíduos ou um indivíduo isolado fazer realmente alguma diferença?

Vou deixar que Mihaly Csinkszentmihalyi continue a responder por mim: "Está na moda afirmar que nenhuma acção individual pode ter um efeito significativo no curso da história. Se Sócrates e Joana d’Arc não se tivessem sacrificado por aquilo em que acreditavam, postula esta teoria, quaisquer outros teriam assumido as respectivas causas. Em todo o caso, os seus gestos, por muito espectaculares que tenham sido, não tiveram uma influência real no curso dos acontecimentos, que é determinado pelo vector das forças sociais e não por escolhas individuais.

Este argumento pode ter mérito no que toca às descobertas científicas e tecnológicas. Se, em vez de conseguirem fazer voar o seu avião, os irmãos Wright tivessem falhado – como tantos outros haviam falhado antes deles – qualquer outra pessoa teria acabado por aperfeiçoar, um ou dois anos mais tarde, uma máquina voadora. A ciência e a tecnologia têm até agora seguido a sua própria trajectória de desenvolvimento, que a mente humana tem aceitado acompanhar passivamente. Mas nem todas as acções humanas são assim determinadas. Os indivíduos verdadeiramente criativos são aqueles que conseguem, contra todas as pressões do instinto e do conhecimento actual, visualizar um modo de vida capaz de tornar muitos outros indivíduos mais livres e mais felizes.

Romper com a aceitação fatalista dos programas genéticos ou históricos exige, no mínimo, que se acredite na liberdade e na autodeterminação. Dificilmente alguém aceitará correr riscos e trabalhar para o bem comum se não acreditar que isso fará alguma diferença. Estará, porém, uma tal pessoa simplesmente a iludir-se a si mesma? Ao fim e ao cabo, os axiomas da ciência postulam que todos os acontecimentos têm que ter causas e, portanto, se S. Francisco decidiu distribuir todos os seus bens pelos pobres e retirar-se para uma vida de oração com outros jovens, foi com certeza porque queria irritar um pai rico, ou porque era um homossexual latente, ou talvez porque tinha um qualquer desequilíbrio hormonal.

É, no entanto, possível aceitar o axioma da causalidade sem nos tornarmos reducionistas. Das muitas causas que determinaram as acções de S. Francisco, uma das principais foi a convicção de que elas eram importantes, e de que ele próprio tinha a obrigação de transformar o mundo que o rodeava. Esta convicção é, em si mesma, uma causa. A ideia do livre-arbítrio é uma profecia que se cumpre a si mesma: os que a seguem libertam-se do determinismo absoluto das forças externas."

Eu acredito que nós temos a obrigação de transformar o mundo que nos rodeia, nós temos a responsabilidade de descobrir porque estamos aqui e para onde vamos, nós temos direito de escolha, podemos escolher evoluir como seres humanos, ir mais longe.

Eu acredito, de verdade, que um grupo de indivíduos ou um indivíduo isolado pode fazer realmente a diferença.

Tuesday, August 12, 2008

Geometria Sagrada

J. A. Wheeler, no livro Gravitation, publicado em 1971, considerou um conjunto infinito de universos, cada um com leis físicas constantes e variáveis. A maioria desses universos poderia ser natimorta, incapaz de, por força da sua física e da sua geometria peculiares, permitir que qualquer acção interessante ocorresse no seu interior. Apenas aqueles que se iniciam com as leis devidas e as constantes físicas podem desenvolver-se para um estágio em que possam tomar consciência de si mesmos. Assim, o nosso universo exis­tente, capaz de sustentar o nível material de existência, é por sua própria natureza um caso especial, com uma física apropriada e, por conseguinte, uma geometria para a existência. Essa geometria subjacente, reconhecida desde a aurora da humanidade como algo espe­cial, é de facto um arquétipo da natureza única dessa fase da criação que possibilita a existência do mundo material. Cada vez que se pro­duz uma forma geométrica, faz-se uma expressão da unicidade uni­versal; ela é ao mesmo tempo única em tempo e em espaço e tam­bém eterna e transcendente, representando o particular e o universal.

Thursday, April 12, 2007

Quem poderá calcular a órbita da sua própria alma?

"As pessoas cujo desejo é unicamente a auto-realização, nunca sabem para onde se dirigem. Não podem saber. Numa das acepções da palavra, é obviamente necessário, como o oráculo grego afirmava, conhecermo-nos a nós próprios. É a primeira realização do conhecimento. Mas reconhecer que a alma de um homem é incognoscível é a maior proeza da sabedoria. O derradeiro mistério somos nós próprios. Depois de termos pesado o Sol e medido os passos da Lua e delineado minuciosamente os sete céus, estrela a estrela, restamos ainda nós próprios. Quem poderá calcular a órbita da sua própria alma?"

Oscar Wilde, in De Profundis

Falling Leaves, Allegory of Autumn, by Hugues Merle, 1872.


Wednesday, September 27, 2006

Poderá a Intuição ser explicada pela ciência?

Ouvimos dizer muitas vezes que a intuição não tem qualquer base científica. Mas, será mesmo assim?...

Comecemos pelas tais bases científicas: Einstein, com a teoria da Relatividade Geral, deu-nos uma descrição muito boa do espaço-tempo em larga escala. Pois é, mas os físicos sabem que não há provas reais que justifiquem a utilização das equações de Einstein a escalas subatómicas. Mas a escalas subatómicas, entramos no território da física quântica. E a física quântica diz que o espaço-tempo não pode ser contínuo. Pois é, a física quântica defende que o próprio espaço-tempo deve ter uma estrutura granular a uma pequeníssima escala, neste caso o tempo de Planck (se não sabes o que é, imagina um comprimento de tempo muito curto). Assim, a estrutura do espaço-tempo não é uma linha contínua, ou só aparentemente é uma linha-contínua...

Pois, mas então não nos deslocamos do passado para o futuro? Não é essa a seta do tempo? Hmm, Stephen Hawking dir-nos-ia que há pelo menos três setas diferentes do tempo: há a seta termodinâmica, que te indica o sentido do tempo em que a entropia aumenta, há a seta psicológica (ou o tempo psicológico) que te dá a sensação de que o tempo passa, e ainda há a seta cosmológica que mede o sentido do tempo em que o Universo está a expandir-se em vez de contrair-se.

Mas, voltemos um pouco atrás: dizia eu que a física quântica não defende um espaço-tempo contínuo, mas um espaço-tempo que a escalas subatómicas é de estrutura granular. Imaginemos uma imensa rede cheia de minúsculos "buracos de verme", isto é, túneis através do espaço-tempo cujas extremidades são semelhantes a buracos negros em miniatura.

Fantástico, não é? E segundo a física quântica, seriam estes buracos de verme que formariam a estrutura daquilo que nós vemos como um espaço e um tempo uniformes e contínuos.

Repara que nesta representação microscópica do espaço-tempo, a terminação de cada buraco de verme poderia estar ligada à terminação de outro buraco de verme, num outro espaço-tempo, em qualquer outro lugar do universo. Neste domínio microscópico não se aplica a teoria da relatividade geral e, assim, “algo” poderia passar da extremidade de um destes buracos de verme para a extremidade de outro buraco de verme, em tempo nenhum. Claro que como estas extremidades são muitíssimo pequenas, nenhuma matéria poderia passar por elas, só mesmo partículas subatómicas como um protão. Mas, e aqui é que chegamos à parte interessante, poderia passar informação: zeros e uns, representados por partículas subatómicas. A informação propagar-se-ia, mas ainda assim precisaríamos de a converter. Precisaríamos de ter integrado um sistema operativo que nos apresentasse essa informação de uma forma inteligível, doutra forma ignorávamo-la como ruído.

Assim, de diferentes regiões do espaço-tempo (nós próprios num espaço-tempo diferente???...) poderia chegar-nos informação pelos túneis do tempo e quando a descodificássemos, interpretávamo-la como intuição, ou seja, informação não dedutiva (não foi produzida por um raciocínio dedutivo), mas ainda informação... vinda de uma fonte desconhecida mas fiável.

Lindo, não é? :)

p.s. Publiquei este texto há algum tempo nos fóruns do Sapo. Hoje encontrei-o por acaso e decidi repensá-lo. Que acham?... :)

Wednesday, March 15, 2006

Tabula Smaragdina

"O Significado e a síntese da obra alquímica surge condensado nas palavras da Tábua Esmeraldina (Tabula Smaragdina). Este texto é uma suposta revelação de Hermes Trismegisto, assim sendo considerado pelos alquimistas medievais. A mais antiga referência a ele foi encontrada num escrito de Dyâbir Ibn Hayyân, datado do século VIII, sabendo-se que São Alberto Magno já tinha conhecimento da sua versão latina. A avaliar pelo estilo, a Tábua Esmeraldina é de origem pré-islâmica e, dado estar em perfeita harmonia com o espírito da tradição hermética, segundo a opinião unânime dos próprios alquimistas, não há razão para duvidar da sua vinculação à origem da hermética, isto muito embora não deixe de ser pertinente pôr-se a questão de saber se o nome de Hermes Trismegisto deve ser atribuído a um homem ou a uma função sacerdotal hermética praticada sob a invocação de Hermes-Thot.

Baseando-nos para tanto no texto latino, transcrevemos de seguida a Tábua Esmeraldina:

1. «Na verdade, decerto e sem dúvida: Quando se pretende obrar os milagres de uma coisa, o de baixo é igual ao de cima e o de cima é igual ao de baixo.»
2. «Assim como todas as coisas procedem do Uno e da meditação do Único, também todas as coisas nascem deste Uno mediante conjugação.»
3. «O seu pai é o Sol, sua mãe é a Lua, o vento carregou-o no seu ventre e a Terra é a sua ama de peito.»
4. «Ele é o pai das maravilhas do mundo inteiro.»
5. «A sua força é perfeita quando se converte em terra.»
6. «Suavemente e com todo o cuidado, separa a terra do fogo e o fino do grosso.»
7. «A fim de receber a força do de cima e a força do de baixo, sobe da Terra ao Céu e daí volta a descer à Terra. Assim possuirás a luz de todo o mundo, assim as trevas se afastarão de ti.»
8. «Esta é a força de todas as forças, pois vence tudo o que é fino e penetra em tudo o que é sólido.»
9. «Por conseguinte, o mundo pequeno acha-se feito à imagem e semelhança do mundo grande.»
10. «Por isso, e deste modo, virão a obrar-se prodigiosas aplicações.»
11. «E por isso me chamam Hermes Trismegisto, pois eu possuo as três partes da sabedoria do mundo inteiro.»
12. «Terminado está assim aquilo que disse sobre a obra do Sol.»

Titus Burckhardt, Alquimia: Significado e Imagem do Mundo

Tuesday, February 21, 2006

"... A fé cria, de certo modo, o seu objecto. E a fé em Deus consiste em criar Deus e, como é Deus quem nos dá a fé n'Ele, é Deus que se está a criar a si mesmo, continuamente, em nós próprios."

Miguel de Unamuno, Do Sentimento Trágico da Vida.

A Demoniac by Joseph Middeleer, 1893.


Friday, February 17, 2006

Miguel de Unamuno, Do Sentimento Trágico da Vida

"Aumentando o amor, esta ânsia ardorosa de ir mais longe e mais fundo vai-se estendendo a tudo o que se vê, a tudo o que se vai compadecendo de tudo. À medida que vais penetrando em ti mesmo, e mais fundo desces em ti mesmo, vais descobrindo a tua própria futilidade, que não és tudo o que não és, que não és o que gostarias de ser, que, em suma, não és mais do que uma ninharia. E ao tocares no teu próprio nada, ao não sentires o teu fundo permanente, ao não atingires nem a tua própria infinitude nem, mesmo, a tua eternidade, tendo lástima de todo o coração a ti próprio, inflamas-te em doloroso amor por ti mesmo, matando o que se chama amor-próprio, e não é mais do que uma espécie de deleite sensual de ti mesmo, algo assim como a carne da tua alma a gozar-se a si mesma.
O amor espiritual a si mesmo, a compaixão que uma pessoa adquire para consigo própria, poderá, porventura, chamar-se de egotismo; mas é o que de mais oposto existe ao vulgar egoísmo. Porque deste amor ou compaixão de ti próprio, deste intenso desespero, porque, do mesmo modo que não eras antes de nasceres, também depois de morreres não serás, passas a ter compaixão, isto é, a amar todos os teus semelhantes e irmãos, em aparência miseráveis sombras que desfilam do seu nada ao seu nada, chispas de consciência que brilham um momento nas infinitas e eternas trevas. E dos demais homens, teus semelhantes, passando pelos que são mais semelhantes a ti, pelos que contigo convivem, vais-te compadecer de todos os que vivem, e até daquilo que, porventura, não vive, mas existe. Aquela longínqua estrela que brilha durante a noite, lá no alto, há-de apagar-se algum dia, e tornar-se-á pó, e deixará de brilhar e de existir. E, como ela, todo o céu estrelado. Pobre céu!
E se é doloroso ter de deixar de ser algum dia, mais doloroso seria, talvez, continuar a ser sempre o mesmo, e só o mesmo, sem poder ser outro ao mesmo tempo, sem poder ser ao mesmo tempo tudo o resto, sem poder ser tudo.
Se olhares para o universo do modo mais próximo e profundo que puderes olhar, que é em ti próprio; se sentires, e não só comtemplares, todas as coisas na tua consciência, onde todas elas deixaram a sua dolorosa marca, atingirás as profundezas do tédio da existência, o poço da vaidade das vaidades. E é assim como chegarás, a compadecer-te de tudo, ao amor universal.
Para amares tudo, para teres compaixão de tudo, do humano e extra-hunamo, do que vive e não vive, é necessário que sintas tudo dentro de ti mesmo, que personalizes tudo. Porque o amor personaliza tudo quanto ama, tudo aquilo de que se compadece. Só nos compadecemos, isto é, só amamos, o que se nos assemelha, e assim aumenta a nossa compaixão, e com ela o nosso amor pelas coisas, à medida que descobrimos as semelhanças que têm connosco. Ou, melhor, é o nosso próprio amor, que por si só tende a crescer, o que nos revela essas semelhanças. Se consigo compadecer-me e amar a pobre estrela que um dia desaparecerá do céu, é porque o amor, a compaixão, me faz sentir nela uma consciência, mais ou menos obscura, que a leva a sofrer por não ser mais do que uma estrela e por ter de deixar de o ser, um dia. Pois toda a consciência o é de morte e de dor.
Consciência, conscientia, é conhecimento partilhado, é consentimento, e con-sentir é con-padecer.
O amor personaliza tudo o que ama. Só é possível apaixonarmo-nos por uma ideia personalizando-a. E quando o amor é tão grande e tão vivo e tão forte e transbordante que tudo ama, então, ele tudo personaliza, e descobre que o Todo total, o Universo, também é Pessoa. Tem uma Consciência, Consciência que, por sua vez, sofre, se compadece e ama, isto é, é consciência. E esta Consciência do Universo, que o amor descobre personalizando tudo o que ama, é o que chamamos Deus. E assim a alma compadece-se de Deus e sente que Ele se compadece dela, ama-o e sente-se amada por Ele, dando abrigo à sua miséria no seio da miséria eterna e infinita, que é, ao eternizar-se e tornar-se infinita, a própria felicidade.
Deus é, pois, a personalização do Todo, é a Consciência eterna e infinita do Universo. Consciência presa da matéria e esforçando-se por se libertar dela. Personalizamos o Todo para nos salvarmos do Nada, e o único mistério verdadeiramente misterioso é o mistério da dor.
A dor é o caminho da consciência, e é por ela que os seres vivos atingem a consciência de si. Porque ter consciência de si mesmo, ter personalidade, é saber-se e sentir-se distinto dos outros seres, e só se consegue sentir essa distinção com o choque, com a dor maior ou menor, com a sensação do próprio limite. A consciência de si mesmo não é mais do que a consciência da própria limitação. Sinto-me eu mesmo ao sentir que não sou os outros; saber e sentir até onde sou é saber onde deixo de ser, e a partir de onde não sou.
E como saber que se existe não sofrendo nem muito nem pouco? Como voltar sobre si, lograr consciência reflexa, senão através da dor? Quando se tem prazer, esquecemo-nos de nós próprios, de que existimos, entramos noutra coisa, alienamo-nos. E só nos ensimesmamos, voltamos a nós próprios, a sermos nós, na dor."

p.s. Já agora, deixo o link para o lugar dos meus sonhos e devaneios: Clareirazinha. :)

Wednesday, February 15, 2006

Um pensamento de Aldous Huxley

"Estava eu sentado, perto do mar, a ouvir com pouca atenção um amigo meu que falava arrebatadamente de um assunto qualquer, que me era apenas fastidioso. Sem ter consciência disso, pus-me a olhar para uma pequena quantidade de areia que entretanto apanhara com a mão; de súbito vi a beleza requintada de cada um daqueles pequenos grãos; apercebia-me de que cada pequena partícula, em vez de ser desinteressante, era feito de acordo com um padrão geométrico perfeito, com ângulos bem definidos, cada um deles dardejando uma luz intensa; cada um daqueles pequenos cristais tinha o brilho de um arco-íris... Os raios atravessavam-se uns aos outros, constituindo pequenos padrões, duma beleza tal que me deixava sem respiração... Foi então que, subitamente, a minha consciência como que se iluminou por dentro e percebi, duma forma viva, que todo o universo é feito de partículas de material, partículas que por mais desinteressantes ou desprovidas de vida que possam parecer, nunca deixam de estar carregadas daquela beleza intensa e vital. Durante um segundo ou dois, o mundo pareceu-me uma chama de glória. E uma vez extinta essa chama, ficou-me qualquer coisa que nunca mais esqueci que me faz pensar constantemente na beleza que encerra cada um dos mais ínfimos fragmentos de matéria à nossa volta."

The Summer Moon – Bait Gatherers by Charles Lees (1800-1880).


Tuesday, February 14, 2006

Viagem Interior

Esta é a história do rabino Eisik, contada por Henrich Zimmer, e que eu encontrei num livro de Mircea Eliade. Vou transcrever:

"Esse piedoso rabino, Eisik de Cracóvia, teve um sonho que lhe mandava que fosse a Praga: aí, sob a grande ponte que leva ao castelo real, descobriria um tesouro escondido. O sonho repetiu-se três vezes, e o rabino decidiu-se a partir. Chegado a Praga, encontrou a ponte, mas guardada por sentinelas; Eisik não ousou investigar. Girando sempre pelos arredores, atraiu a atenção do capitão dos guardas; este perguntou-lhe amavelmente se perdera alguma coisa. Com ingenuidade, o rabino contou-lhe o seu sonho. O oficial explodiu em gargalhadas: «Realmente, homenzinho!», disse-lhe ele, «tu usaste os teus sapatos para percorrer todo este caminho simplesmente por causa de um sonho? Que pessoa, de posse da sua razão, acreditaria num sonho?» O próprio oficial ouvira uma voz em sonhos: «Falava-me de Cracóvia, ordenando-me que fosse lá e procurasse um grande tesouro na casa de um rabino cujo nome era Eisik, filho de Jekel. O tesouro devia ser descoberto num recanto poeirento, onde estava enterrado por detrás do fogão.» Mas o oficial não tinha qualquer fé nas vozes escutadas em sonhos: era uma pessoa de juízo. O rabino inclinou-se profundamente, agradeceu-lhe e apressou-se a regressar a Cracóvia. Cavou no canto abandonado da casa e descobriu o tesouro que pôs fim à sua miséria."

E agora os comentários de Heirich Zimmer: "Assim, o verdadeiro tesouro, o que põe fim à nossa miséria e às nossas provações, nunca está muito longe, não é preciso ir buscá-lo a um país longínquo, jaz enterrado nos recessos mais íntimos da nossa própria casa, isto é, do nosso próprio ser. Está atrás do fogão, o centro que fornece de vida e calor, que comanda a nossa existência, o coração do nosso coração, se soubermos cavar. Mas há então o facto estranho e constante de que é só após uma viagem piedosa a uma região longínqua, num país estrangeiro, sobre nova terra, que o significado dessa voz interior que guia a nossa procura poderá revelar-se-nos. E a esse facto estranho e constante junta-se outro: aquele que nos revela o sentido da nossa misteriosa viagem interior deve ser, ele mesmo, um estrangeiro, doutra crença ou de outra cultura."